Estado de SP monitora lista de 'devedores contumazes' que engloba R$ 24 bilhões e tenta recuperar ativos

 

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O governo do estado de São Paulo, junto com o Ministério Público, trabalha com uma lista de “devedores contumazes” formada por cerca de 235 empresas pertencentes a 98 grupos econômicos. Juntas, essas companhias foram responsáveis pela sonegação de R$ 24 bilhões aos cofres públicos. O valor representa em torno de 5,3% da dívida ativa do estado, ou seja, todo o estoque de débitos vencidos e com pagamento em aberto.

O problema ganhou notoriedade depois da megaoperação contra a Refinaria de Manguinhos, do Rio de Janeiro, na semana passada (veja abaixo). A lista detalhada não foi fornecida pelas três entidades que formam o Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos (CIRA-SP), criado para monitorar o assunto e alinhar esforços na recuperação dos ativos. O governo diz que parte dessas empresas respondem a processos na Justiça sob sigilo e que a divulgação dos dados poderia colocar as ações em risco.

Ainda não existe, na legislação brasileira, um critério claro para definição do devedor contumaz. Nos últimos dias, o governo Lula (PT) sinalizou apoio a um projeto de lei no Congresso que define juridicamente essa figura. A proposta foi apresentada por Rodrigo Pacheco (PSD-MG), passou pelo Senado e tramita agora na Câmara dos Deputados, sob relatoria do deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP). Há expectativa de que o projeto possa ser analisado na próxima semana.

Pelo texto original, seria considerada devedora contumaz a empresa cujo “comportamento fiscal se caracteriza pela inadimplência substancial, reiterada e injustificada de tributos”. O piso da dívida, para classificação em nível federal, seria de valor igual ou superior a R$ 15 milhões e equivalente a mais de 100% do seu patrimônio. Estados e municípios podem adotar régua mais baixa, mas precisam observar pelo menos quatro períodos de apuração de inadimplência consecutivos ou seis alternados no prazo de 12 meses, bem como ausência de justificativa válida perante o fisco.

Essa marca é facilmente batida na lista dos 500 maiores devedores de impostos em São Paulo, divulgada regularmente pela Procuradoria-Geral do Estado (PGE), mas não é possível apontar através dela quais estão sendo tratadas dessa maneira pelo CIRA-SP. Juntas, essas companhias inadimplentes somam R$ 195 bilhões em débitos, elevando para 43% a participação sobre o montante acumulado no estado.

A Refit, alvo de operação recente, aparece isolada na liderança dessa lista, com R$ 8,7 bilhões em outubro, seguida de duas empresas de telefonia, Tim (R$ 3,9 bilhões) e Telefônica/Vivo (R$ 3,7 bilhões). Em quarto lugar está a varejista Grupo Pão de Açúcar (R$ 3,6 bilhões) e, na quinta colocação, a rede de farmácias Drogacenter (R$ 3,2 bilhões), de Ribeirão Preto.

O Grupo Pão de Açúcar afirmou ao GLOBO que a dívida foi renegociada com o estado em abril de 2024, e contestou a permanência na lista. A empresa obteve 80% de desconto e deve pagar R$ 794 milhões em 10 anos, com correção monetária. Na época, a empresa de capital aberto divulgou um fato relevante aos acionistas dizendo que tomou a decisão pela “análise individual dos processos judiciais” e “ponderando riscos e benefícios” sobre a adesão do ponto de vista financeiro.

Tim, Vivo e Drogacenter também aparecem nas rodadas de acordo com o governo, segundo dados oficiais da PGE, mas não de forma integral. As três companhias regularizaram débitos na ordem de R$ 125 milhões, R$ 1,5 bilhão e R$ 89 milhões, respectivamente. “A Vivo esclarece que mantém a sua regularidade fiscal e que possui discussões com o fisco Estadual nas esferas administrativa e judicial, conforme previsto na legislação”, respondeu a empresa. Tim e Drogacenter não comentaram.

A maior parte da dívida ativa do estado se refere ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), mas ela também é ampliada pelo Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD) e pelo Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA).

Caso Refit

O valor sonegado pela Refit, segundo o MP de São Paulo, é de R$ 26 bilhões em todo o Brasil. A Promotoria afirma que diversas empresas secundárias atuam na tentativa de afastar a responsabilidade pelo recolhimento de ICMS, mecanismo detectado pela Secretaria da Fazenda. O grupo ignorava as obrigações fiscais, diz o MP, e criava novas estratégias de fraude fiscal para não arcar com os tributos e prejudicar a livre concorrência.

Em nota, a Refit alegou que “os débitos apontados, majoritariamente referentes ao ICMS, decorrem de uma divergência tributária já judicializada, originada de interpretações controversas da legislação”. Segundo ela, os valores estão sendo contestados “por meios legais e transparentes, prática adotada por inúmeras empresas do setor”. Ela também contestou as suspeitas de fraude em importações e o envolvimento com postos de combustíveis controlados por organizações criminosas.

Em São Paulo, o valor devido em outubro foi atualizado para R$ 9,6 bilhões em coletiva de imprensa com participação do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), na quinta-feira, 27 de novembro. O chefe do Executivo paulista fez questão de abrir o evento com um comparativo desse montante com obras de saúde e educação, em uma tentativa de colocar em perspectiva o tamanho do prejuízo:

— Esses caras fraudam R$ 350 milhões por mês. É como se a gente tirasse da população um hospital de médio porte, como se impedisse a construção de 20 escolas — disse ele.

Medidas

A criação de um comitê que engloba o governo do estado e o Ministério Público, em 2020, foi a medida mais concreta anunciada pelo Executivo paulista para coibir fraudes tributárias. No caso da operação que mirou o Refit, por exemplo, membros do MP disseram que foram alertados pela PGE a respeito da possibilidade de crime financeiro e da dificuldade em executar a dívida por conta de uma possível estratégia de lavagem de dinheiro por parte dos administradores.

Balanço relativo ao ano passado aponta que o Comitê Interinstitucional de Recuperação de Ativos recuperou R$ 441 milhões durante o ano, além de um montante negociado de R$ 4,35 bilhões em créditos tributários. O valor líquido foi de R$ 2,3 bilhões, por conta dos benefícios cedidos. Em quatro anos, a arrecadação foi de R$ 1,18 bilhão, parte dela obtida por meio de bloqueios judiciais e outra por acordo. Entram na lista de bens 637 imóveis, 553 veículos e 14 embarcações.

O governo do estado, por meio da PGE, responsável por cobrar os valores na Justiça, promove audiências com os devedores e acena com um programa de transação tributária denominado “Acordo Paulista”, que oferecesse desconto e parcelamento da dívida. Este foi o meio usado pelas empresas citadas para reduzir o passivo. O levantamento mais recente do programa estadual menciona R$ 54,7 bilhões renegociados até o ano passado. Este ano, um novo edital abrangeu R$ 3,2 bilhões, segundo dados mais recentes da pasta em consulta pública.

O caso Refit dá sequência a outras operações relevantes, como a “Metalmorfose”, deflagrada no ano passado e que mirou um esquema de sonegação fiscal no setor de metais, especialmente produtos de cobre. Segundo as investigações, foram emitidas notas fraudulentas na ordem de R$ 17 bilhões entre 2018 e 2020. O CIRA-SP cita ainda as operações “Cavalo-Marinho”, de 2021, contra uma fabricante de embarcações de luxo, “Nuvem de Fumaça”, de 2022, que envolveu uma distribuidora de tabaco, e “Vênus”, em 2023, direcionada a uma fabricante de roupas.