Erick Pulgar, do Flamengo, supera timidez e fala de dores e dificuldades que já enfrentou: 'Fazer as tatuagens foi uma terapia'

 

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O deck ao redor do pequeno lago de carpas é o cantinho da casa onde Erick Pulgar se sente mais à vontade. Ali, o meio-campo costuma repousar em silêncio, ao lado dos peixes, para recarregar as baterias entre os jogos do Flamengo. E foi o lugar por ele escolhido para, quase literalmente, se despir e contar sua história ao GLOBO. Por algumas horas, em meio à recuperação de uma fratura no pé direito sofrida há quase três meses, o chileno de 31 anos deixou de lado a timidez para — em rara entrevista — falar de carreira, família, tristezas, sonhos. De coração e peito abertos, tatuagens à mostra.

O corpo quase todo “riscado”, mais do que vaidade estética, é a expressão do sofrimento. Os incontáveis desenhos, que começaram com um par de asas nas costas aos 13 anos, viraram válvula de escape para o jogador diante das dificuldades enfrentadas quando, aos 21 anos, decidiu sair de casa, na cidade portuária de Antofagasta, rumo ao sonho de jogar na Europa. Foi a maneira que encontrou também para lidar com a frustração de não ter “decolado” como imaginava no futebol mais prestigiado do mundo, onde atuou por sete anos, entre Itália e Turquia.

— As tatuagens mostram como foi minha vida até esse momento, em que eu sentia muita falta da minha gente. Tinha muita dor dentro de mim. Não conseguia aguentar. Fazer as tatuagens foi como uma terapia. Pude botar essa dor para fora. Libertar-me de muitas lembranças de quando eu era pequeno, algumas ruins — conta Erick.

Fazer as tatuagens foi como uma terapia. Pude botar essa dor para fora. Libertar-me de muitas lembranças de quando eu era pequeno, algumas ruins

Meia fala como ganhou voz com Filipe Luis se lembra fratura contrea o Bayern

Veja ensaio com fotos das tatuagens

MARCAS NA PELE

Em um “portunhol” carregado de sotaque, apesar dos três anos de Rio de Janeiro, o meia vai destrinchando o emaranhado de rabiscos, envolto em nostalgia. Nada de conquistas dos gramados. Ali estão o sobrenome da mãe Karina (Farfán), o nome dos irmãos (ele é o mais velho dos cinco), a religião católica, o bairro em que cresceu, o escudo do time do bairro... Também aparecem o desenho que via na infância (Tom & Jerry), o jogo de videogame preferido (Crash Bandicoot). Suas raízes, seus alicerces, nos quais tentava se agarrar para não se perder.

— Foi de um dia para o outro que deixei de viver com meus irmãos, minha mãe. Sentia muita saudade. Era outro idioma, meus companheiros não criavam um ambiente de amizade. Morei três meses em um hotel. Com saudade de todos, me sentindo sozinho — lembra.

Na Itália, desenhou na perna uma figura macabra, segundo ele, uma espécie de autorretrato da época, quando chegou a pensar em jogar tudo para o alto:

— Não me importava se o contrato seria encerrado. Se ficaria sem jogar cinco anos. Queria voltar para o Chile, cheguei a comprar passagem. Disse a um amigo, Luís, que não aguentava mais. No dia seguinte, chego ao hotel e lá estão minha mãe e Luís, com um dos meus agentes. Falaram que eu tinha que continuar. Que eu não estava sozinho. Eles salvaram minha carreira.

Superação serviu para ajudar a irmã, após dificuldade para deixar o pai

Erick com a mãe, Karina, e o irmão Cristobal, no Rio

Marcelo Theobald

Com o apoio de sua gente, Erick conseguiu superar o momento difícil. Veio para o Brasil, provou seu talento e se tornou peça fundamental no rubro-negro. Fortalecido, conseguiu retribuir o suporte quando uma de suas irmãs precisou. Paola, de 18 anos, teve no jogador um aliado na luta contra uma crise de depressão em 2024:

— Ela não queria ajuda. Teve semanas, meses, em que estava mal. Sempre tive medo de perdê-la. Sabemos que o tema da depressão é muito complicado. E quando você não se deixa ajudar, não consegue superar.

O meia pediu dispensa de compromissos com o clube para estar perto dela e, quando foi obrigado a retornar ao Rio, a trouxe para morar com ele. Eventualmente, Paola aceitou tratamento profissional e, recuperada, voltou para o Chile. Com bagagem extra: os dois chihuahuas de estimação do irmão, que ganhou de presente.

— Os cães foram como uma terapia extra, que ajudou bastante — diz Erick.

Paola foi embora, mas vieram a mãe e o irmão caçula, Cristóbal, de 14 anos, que hoje vivem com o meia, numa mansão na Barra. Tê-los por perto foi crucial na reabilitação da grave lesão sofrida ainda no Mundial de Clubes, em junho. Assim como foi importante ter feito a cirurgia e a primeira parte da recuperação no Chile, perto dos amigos e do restante da família. Hoje, o jogador está na reta final dos trabalhos em campo acompanhados pela fisioterapia, com volta ao time prevista para outubro.

A família é o porto seguro de Erick desde o primeiros passos no futebol, aos 5 anos. No time do bairro, o Miramar Sureste, foi comandado pelo pai, Pablo, até os 13. Mas, para seguir adiante rumo a um clube com categoria de base precisou cortar o cordão umbilical e criar “asas” — as tais tatuadas.

— Eu não aceitava, não queria deixar meu pai, que era meu técnico. Mas, se eu queria ser profissional, tinha que ir para o Antofagasta — recorda ele, que abriu mão da escola para se dedicar ao esporte.

Ascensão no Chile e pressão no Flamengo: a chave virou, e a voz saiu

Erick concede entrevista em sua casa, no Rio

Marcelo Theobald

Atuou como camisa 10, zagueiro e lateral até finalmente brilhar como meia na Universidad Católica, entre 2014 e 2015. Na época, a seleção chilena tinha nomes como Arturo Vidal e Charles Aránguiz, que viraram inspiração. Com o sobrenome do pai nas costas, Erick chegou à Itália em 2015. Após quatro anos no Bologna, foi para a Fiorentina, começou a desabrochar e pediu para usar o primeiro nome na camisa. O pedido se repetiu quando chegou ao rubro-negro, em 2022. Passou a concorrer justamente com Vidal, com quem já disputava vaga na seleção. A adaptação não foi fácil:

— Com essa perspectiva da torcida, de um cara que vinha da Europa, que chegaria rápido para ser o jogador que eles queriam que fosse, era complicado. Cheguei num momento em que o Flamengo tinha uma boa equipe, um bom treinador (Dorival Júnior). Era muito difícil o técnico tirar alguém para me colocar .

Erick, então, precisou falar. Não só em campo. Primeiro, chamou atenção nos treinos. Mesmo em um 2023 para esquecer, sem títulos, o chileno ganhou terreno com Jorge Sampaoli. O perfil linha dura do técnico argentino acabou ajudando.

— Cheguei e não joguei muito, mas meus treinamentos eram de alto nível. Não há nada mais importante para mim que treinar bem, ainda sem jogar. Minha forma de treinar convenceu o Sampaoli. Eu não estava em seus planos. Me lembro de um jogo com Racing, pela Libertadores. Eu tinha treinado de zagueiro. Ele chega no dia do jogo e diz: "Como está para jogar hoje?" E eu lhe digo: "Tudo bem. De zagueiro?" E ele me diz: "Não, no meio". E depois chegamos à reunião e eu estava de titular do meio-campo. Ele te exige o 100%. E se você o vê nos jogos, ele não parece tão louco como nos treinamentos. Então, para mim, ajudou muito.

A volta por cima no Brasil

Pulgar deixa o campo na partida entre Flamengo e Bayern de Munique

CHANDAN KHANNA / AFP

Nessa época, a percepção do que era o Flamengo já lhe saltava aos olhos. Mesmo após os títulos da Libertadores e da Copa do Brasil, a cobrança da torcida por manter o patamar era enorme. Erick enfrentou vaias e pressão desde a falha no Mundial contra o Al Hilal, em 2023, e a partir daí ajustou a rotina fora de campo. Com ajuda de Fabinho, seu agente no Brasil, redobrou atenção com alimentação, sono e cuidados físicos. Nos jogos, fez o que sabia melhor: se doar. De um volante de contenção, desdobrou-se em um meia com boa saída de trás, passes precisos e até bola parada.

— Aumentou a exigência, né? Aqui é difícil ganhar o carinho das pessoas, porque eles sempre exigem o 100%. Te amam e te odeiam em 90 minutos, tem que estar preparado. Isso serviu para me preparar para o que sou agora. Posso errar dez vezes, mas a minha vontade de continuar correndo e jogando não mudam — ensina.

Para avançar, porém, era necessário falar mais. Primeiro com Tite, depois com Filipe Luís, o camisa 5 enfim fez valer a experiência no futebol europeu. E enfim, ganhou voz em campo.

— Tenho mais confiança e respeito. Tem jogadores que, quando você diz algo, dá uma ordem, levam a mal. E isso não é bom para o time. Nesse momento, havia muitos jogadores de qualidade que permitiam isso. Dizer algo, gritar. Pude crescer nisso. De poder falar. No campo, sou outra pessoa.

A partir de então, Erick virou um jogador de confiança do novo treinador.

— O futebol é como xadrez. Ganha o mais inteligente, não o mais forte. Falei isso com o Filipe Luís, o jogador termina sendo um treinador dentro do campo. Começa a aprender muitas coisas de tática. Filipe me fala sempre que eu tenho cabeça para ser um futuro treinador — revela, para em seguida descartar tal possibilidade.

Fora dali, a timidez permanece. O agito do Rio não fisgou o solteiro chileno:

— Não saio muito, sou de ficar em casa.

Erick Pulgar em sua casa no Rio, no lugar onde se sente mais tranquilo

Marcelo Theobald

Fã de feijoada, o meia garante estar à vontade na cidade, que lhe deu acolhida bem diferente da que recebeu na Europa. Seus sonhos — que um dia já foram jogar na seleção e comprar uma casa, ambos atingidos — hoje se resumem a reunir toda a família no Brasil.

Enquanto isso não acontece, ele se joga no sofá, se entrega ao beijo da mãe para uma foto do GLOBO e ainda escuta ao telefone os conselhos do pai, que até hoje corrige seus movimentos no gramado. Quando a tristeza ameaça bater à porta, como no passado europeu, Erick recorre à calma trazida pelo silêncio do quarto ou pelo movimento das carpas, enquanto faz planos para o futuro:

— Quando me aposentar, só quero estar com minha família, nada de futebol.