Da perda do filho à doença autoimune, Carlinhos de Jesus fala de apoio encontrado na dança: 'Me amparou'

 

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Até o mês passado, era difícil para a equipe médica de Carlinhos de Jesus arriscar que ele estaria na capa da Canal Extra assim, de pé. O dançarino, de 72 anos, tem uma doença autoimune que lhe causa dores fortíssimas no quadril e nos glúteos, e o deixou, pelo menos por enquanto, sem movimentos na perna direita. Nada disso o impediu, no entanto, de fazer poses, caminhar, rodopiar… e até pregar um susto na equipe. Com meia hora de ensaio fotográfico, ele bambeou. Mas recuperou o equilíbrio sem precisar aceitar as ofertas de ajuda. Quis resistir a mais alguns cliques. E que fique claro: não foi embaixo de chuva nem sobre chão escorregadio! O aguaceiro todo das imagens é resultado do uso de inteligência artificial (e o que é fake para aí). De qualquer maneira, antes que os médicos que nos leem por aqui nos condenem, o jurado do “Dança dos famosos” avisa:

— Sou muito rebelde. Acho que é por isso que estou voltando a andar tão rápido. Eu estava me preparando para que isso não acontecesse. Minha médica mesmo dizia que não sabia se iria acontecer. No início, isso me deixou muito para baixo. Eu sempre fui independente e, de repente, me vi precisando de ajuda o tempo inteiro. No hospital, para não acordar minha mulher (Rachel, com quem está casado há 40 anos), eu levantava secretamente para ir ao banheiro e segurava naquele cabideiro onde se apoia a bolsa de soro. Até que um dia eu caí e ela percebeu. Foi só uma vez. Mas a ousadia sempre fez parte de mim — diz Carlinhos.

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O carioca está focado nos diversos tratamentos que buscou. São várias modalidades de fisioterapia, musculação, hidroterapia e infusão de imunoglobulina uma vez por mês no hospital.

— A dança também me ajudou, tenho memória corporal. Sempre me alimentei bem, não fumo, não bebo, não cheiro. Tudo contribuiu. Se deixar, faço fisioterapia duas vezes ao dia. Mas não pode. Acho que essa ansiedade ajuda também.

Ainda não dá para saber quais serão as sequelas da neuropatia radiculopatia desmielinizante crônica (o nome certo da doença que o dançarino sabe de cor e fala sem travar a língua). O artista foi diagnosticado em 2022.

De pé, Carlinhos de Jesus faz ensaio para a Canal Extra inspirado no filme "Cantando na chuva"

Renata Xavier

— Estamos na fase de freá-la. Acho que a doença já estava me deteriorando e eu não sabia. Há alguns anos, antes disso tudo acontecer, estava dando uma aula e uma pessoa me perguntou: “Por que você está mancando?”. Eu não tinha reparado, mas passei a ficar preocupado. Depois, numa viagem a trabalho, senti as primeiras dores intensas. Fui ao meu ortopedista, achava que era coluna, mas não viam nada. Comecei a busca por médicos diversos. Minha esposa, que é médica obstetra, e eu passamos a estranhar quando nenhum neurologista me dava um diagnóstico e também não se prontificava a pegar o meu caso — relembra o coreógrafo, que deixou de lado os doutores bambambãs e encontrou a médica Cristiane Afonso, da UFRJ, quando decidiu ir atrás de pesquisadores.

Quando sentiu o avanço das dores e ficou internado em julho deste ano, Carlinhos passou a imaginar, inicialmente, o pior dos cenários para a própria carreira.

De pé, Carlinhos de Jesus faz ensaio para a Canal Extra inspirado no filme "Cantando na chuva"

Renata Xavier

— Fiquei 12 dias tomando morfina para ver se me aliviava. Estava com uns oito remédios, injeção para evitar trombose e sei lá mais o quê. Um dia, chorei muito. “E agora, o que vai ser da minha vida? Eu só sei dançar”, eu me perguntava olhando para o teto. Aí comecei a levantar possibilidades. Eu sou pedagogo, por formação, já fui concursado. Vou estudar e voltar para onde comecei. Posso virar palestrante… Ao mesmo tempo, já me preparava para a perda de contratos — relembra o jurado da “Dança dos famosos”, que se cansou de dar nota 9,8 para o nível da dor intensa que sentia.

A primeira negociação foi com o renomado Festival de Dança de Joinville, mas, para a surpresa do artista, o evento se negou a cancelar sua presença. “De cadeira de rodas ou andando, dançando ou não, queremos Carlinhos aqui. Ele só não vem se não quiser”, disseram. Para quem estava com dificuldades para dormir com tanta insegurança na cabeça, veio a alternativa de sonhar acordado.

— Chorei muito de novo. Foi a injeção de ânimo que eu precisava, me senti valorizado. Passei a me ver dando aula mesmo na cadeira de rodas. Combinei com minha assistente. E assim eu fiz. Comprei agora uma cadeira adaptada, que lembra essa dos jogadores de basquete das paralimpíadas, para poder dançar. Falei para a Ana Botafogo também que quero fazer um espetáculo com ela. Estou assim, visualizando novas coreografias.

De pé, Carlinhos de Jesus faz ensaio para a Canal Extra inspirado no filme "Cantando na chuva"

Renata Xavier

Cantando na chuva

Não tem mais tempo ruim para Carlinhos de Jesus, e cada melhora tem sido celebrada, com cantorias na chuva. A analogia aqui é para brincar com o filme hollywoodiano, de 1952, que inspira estas belíssimas fotos feitas no Centro do Rio. A ideia de ser feliz — e dançar — apesar das tempestades tem tudo a ver com a maneira que Carlinhos encontrou para se reinventar.

— Não gosto da ideia do impossível. Dá vontade de falar umas baixarias quando dizem que não posso ou não consigo fazer alguma coisa (risos). Até quando fazia as comissões de frente do carnaval, tinha uma ideia, queria executá-la. E aí, se no teste não dava certo, já tinha um plano B, C, Z. No fim, funcionava melhor que o A. É coisa de São Jorge, meu guerreiro. Ogum e Deus também me ajudam bastante — diz o candomblecista.

Mais do que ser turrão, o segredo, ou a coincidência, é ter na dança uma companhia constante. Foi ela que o acompanhou nos momentos em que ficou sem chão. Foi assim quando perdeu o pai, por sequelas de um enfisema pulmonar, e, mais tarde, quando a mãe e o sobrinho se suicidaram.

De pé, Carlinhos de Jesus faz ensaio para a Canal Extra inspirado no filme "Cantando na chuva"

Renata Xavier

— A casa que era da minha família até hoje tem a marca da bala do tiro que minha mãe deu em si mesma. Levei muito tempo para voltar naquele lugar. Na época, eu tinha um show beneficente pela Santa Casa de Misericórdia de Resende e me recusei a cancelar, dedicando a apresentação à minha mãe. Ela dizia: “Trabalho é responsabilidade. Você já é artista, acham que é viado, drogado, então tem que ser responsável”. É meio a história do palhaço, que tem que fazer rir, mesmo quando quer chorar. O que me confortava era o trabalho — relembra.

A escolha consciente pela dança se repetiu quando ele viveu a maior dor que um pai pode ter: a morte de um filho. O primogênito de Carlinhos, Carlos Eduardo, o Dudu, foi assassinado em novembro de 2011 por um policial militar, motivado por ciúme de uma mulher.

Carlinhos de Jesus e o filho, Dudu

Divulgação | Reprodução/Instagram

— Enterrar um filho é totalmente contra a lógica. Ali eu me revoltei com muita coisa. Foi como se a vida tivesse acabado. Uma semana depois, fui fazer um show nos Emirados Árabes. Renata Vasconcellos foi a âncora do evento. Antes que eu entrasse no palco, ela contou ao público o que tinha acontecido. Antes de eu me apresentar, todos aqueles xeiques ficaram de pé e me aplaudiram. A dança me amparou ali. Mas, no caso da perda de um filho, nada vai consolar. Só me dê um abraço e pronto.

Atitude idêntica teve o artista quando ficou frente a frente com a mãe do assassino de Dudu, no dia do julgamento.

— No intervalo, fui ao banheiro e me deparei com aquela senhora. Eu te pergunto: o cara deu os oito tiros, mas os pais dele têm culpa? Quem sou eu para mensurar qual dor é maior? Ela estava perdendo o filho dela também. Eu não me lembro mais o que falei, mas nos abraçamos. Ela estava fragilizada. Foi instintivo — diz Carlinhos, que chora ao relembrar.

Além de Dudu, Carlinhos tem outros quatro filhos: Wellington, Mauro, Marco e Tainah. Cada um com uma mulher diferente. O primogênito é fruto do relacionamento com Neide, a primeira esposa. E só a caçula é filha da atual mulher.

— Eu era muito levado. Mas garanto que fui apaixonado por todas elas. Por algumas, foi uma paixão de um dia só. Não gostava de dormir sozinho (risos). Mas só fiquei com elas enquanto estive solteiro. A gente acabou perdendo contato e fui reencontrando os filhos ao longo da vida. Sempre que eles se aproximavam, a cara não negava. Já sabia que era meu.

Os filhos de Carlinhos de Jesus: Tainah, Welington Martins, Mauro Benevenuto e Marco Vento

Reprodução/Instagram

A reunião oficial da família completa aconteceu depois da pandemia.

— Eles são adoráveis juntos. E estamos muito próximos agora. Eu também formei um patrimônio ao longo da vida, essas conversas fazem parte. É melhor que todos eles, que são irmãos, estejam próximos para, quando acontecer algo, poderem conversar a respeito.

E como anda a libido do homem levado, em meio a tudo que tem vivido?

— Rapaz, já estou com 72 anos (risos). Minha mulher e eu somos eternos namorados. A gente só briga quando eu quero ousar na parte artística, e ela, que é dos números, vem colocar o meu pé no chão. A gente não transa todo dia como acontecia nos oito primeiros anos de casado. Depois passamos para várias vezes na semana. Agora, são poucas vezes e olhe lá (risos). Mas a gente tem muito amor. Casamento são sempre perdas e ganhos e estamos sempre ajustando as contas. Já disse que ela é boa com isso?

De pé, Carlinhos de Jesus faz ensaio para a Canal Extra inspirado no filme "Cantando na chuva"

Renata Xavier

Equipe

Texto e produção executiva: Leonardo Ribeiro, leonardo.ribeiro@extra.inf.br. Fotos: Renata Xavier, @renataxavierfoto. Styling: Samantha Szczerb, @samanta_szczerb. Beleza: Laís Régia, @laisregiaa. Assistentes de fotografia: Leandro Lucas e Ludmyla Nascimento. Agradecimento: Centro carioca de fotografia, programa Reviver Cultural e Prefeitura do Rio de Janeiro.

Carlinhos de Jesus usou

Ângelo Bertoni: @angelobertoni.oficial. Democrata: democrata.com.br. Dois maridos: doismaridos.com.br. Oficina Reserva: oficinareserva.com.br

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