Cem mil voluntários e vídeos virais: A ‘jornada improvável’ que levou Mamdani à Prefeitura de Nova York
Quando Zohan Mamdani anunciou sua candidatura à Prefeitura de Nova York, em 2024, era praticamente um desconhecido. Aos 33 anos e então deputado estadual, ele se descrevia como um socialista democrata e era abertamente crítico às ações de Israel na Faixa de Gaza — características que o tornavam um candidato improvável do Partido Democrata. Sua forte presença nas redes sociais, porém, rapidamente ampliou o alcance de sua mensagem: em apenas 12 meses, ele conquistou o apoio de 100 mil voluntários, acumulou mais de 5 milhões de seguidores, garantiu uma vitória surpreendente nas primárias do partido e, por fim, consagrou-se como vencedor da disputa eleitoral, com mais de 50,4% dos votos.
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Embora as sondagens mais recentes já mostrassem a vantagem de Mamdani sobre seu principal adversário, o ex-governador democrata Andrew Cuomo, o resultado das eleições de terça-feira fez grandes jornais como o New York Times falarem em “jornada improvável”, tentando explicar como o candidato — o primeiro muçulmano e o mais jovem em um século a ser eleito — “derrotou a elite” política da cidade. Em sua primeira declaração sobre o assunto, o presidente americano, Donald Trump, indicou que o shutdown pode ter levado à derrota republicana, enquanto democratas sugeriram lições que o partido deve aprender. Nas ruas da cidade, porém, eleitores pareciam apresentar razões comuns para o resultado:
— As pessoas estão com dificuldade para pagar o supermercado, aluguel, e ele tem propostas para isso — disse ao GLOBO um voluntário da campanha de Mamdani que preferiu não ser identificado. — Ele também tem sido muito bom em fazer panfletagem, visitar o máximo de pessoas possível, ir às comunidades onde ninguém mais vai. E a mensagem dele é muito boa, especialmente nas redes sociais, onde sempre se manteve firme. Além disso, Cuomo representa o establishment, que é muito impopular hoje em Nova York.
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Filho da cineasta Mira Nair, indicada ao Oscar, Mamdani investiu fortemente na estética de sua presença digital, com publicações atraentes, carismáticas e de fácil compreensão. O primeiro vídeo de sua campanha para prefeito, publicado em novembro passado, o mostrava andando pela cidade e falando sobre o custo de vida ao som de um hip-hop. O material o retratou como um jovem disposto a criticar a gravidade dos problemas locais — traço constante em todos os seus conteúdos. Em sua estreia, ele ressaltou como os nova-iorquinos estavam, em suas palavras, sendo “esmagados pelo aluguel e pelo custo da creche”, enquanto “os trabalhadores estão sendo expulsos da cidade que construíram”:
— Um prefeito poderia mudar isso — sugeriu.
Dentro da disputa
Com o tempo, seus vídeos cheios de energia também inspiraram apoiadores a criar seus próprios conteúdos — o que desatou uma onda de respostas e mais vídeos. Ainda que em muitos aspectos a sua campanha tenham lembrado a corrida presidencial de Kamala Harris, analistas avaliam que Mamdani soube adotar diferenças estratégicas que o levaram à vitória. Nos vídeos virais, o candidato deixou claro suas ambições para a cidade: reduzir o custo de vida aumentando os impostos sobre os nova-iorquinos mais ricos, prometendo ainda congelar aluguéis, garantir ônibus rápidos e gratuitos e creches universais.
— Se você perguntar aos eleitores por que eles votaram em Mamdani, não acho que vão dizer que foi porque viram algo ‘fofo’ nas redes sociais — disse à NBC Jonathan Nagler, professor de política na Universidade de Nova York e codiretor do Centro de Mídias Sociais e Política da instituição. — Acho que vão dizer que foram influenciados porque aprenderam algo sobre as políticas que ele defende e que são importantes para eles.
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Enquanto a campanha de Kamala foi marcada por vídeos com frases virais e sem teor político — como a célebre fala sobre “cair de um coqueiro” —, Mamdani conseguiu acrescentar seu toque pessoal na internet. Em um de seus vídeos, ele aparece cumprimentando nova-iorquinos pelas ruas de Manhattan, dizendo que os moradores “merecem um prefeito que possam ver, ouvir e até gritar com ele”. Em outro, explicou o sistema de votação em hindi fluente, recheando sua fala com referências à cultura pop do sul da Ásia. E, quando sua campanha atingiu o limite de US$ 8 milhões gastos, ele pediu aos apoiadores que parassem de doar e se voluntariassem para bater de porta em porta.
— Acho que, no nível de campanha política, reduzir tudo a três pilares foi uma estratégia muito inteligente para que as pessoas entendam claramente o que ele defende. Eu e meu marido, por exemplo, estamos fazendo fertilização in vitro. Quando Mamdani foi perguntado sobre a principal proposta de sua plataforma, ele citou creche universal — disse ao GLOBO Grace Owens, 33 anos, moradora do Brooklyn. — E eu acho que, com frequência, as eleições políticas parecem completamente desconectadas daquilo que realmente afeta nossas vidas diárias. Essa é uma proposta que teria um impacto concreto na minha vida e na nossa capacidade de continuar vivendo em Nova York pelos próximos anos.
‘Democracia em ação’
A propagação da mensagem foi tão eficaz que Cuomo, que passou meses como favorito nas primárias democratas antes de ser ultrapassado por Mamdani, recorreu à ironia para tentar minimizar a popularidade do rival nas redes sociais. Em declarações à imprensa, o ex-governador disse que seu oponente era “muito bom com vídeos, mas não com a realidade”, criticando sua alegada falta de experiência. O prefeito Eric Adams, que durante um breve período tentou buscar a reeleição, chegou a dizer: “Eles têm um histórico de tuítes. Eu tenho um histórico nas ruas.” Trump também ecoou as críticas, buscando taxar Mamdani como um “comunista puro” e um “maluco total”.
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Mas, enquanto Cuomo e seus aliados desprezavam o sucesso digital de Mamdani, não perceberam como ele se traduzia em entusiasmo real nas ruas. Assim como Kamala e Trump em suas campanhas presidenciais, Mamdani ainda contou com o apoio de influenciadores e celebridades, aparecendo em vídeos virais. Segundo analistas, porém, essas colaborações deram certo porque as publicações continuaram a abordar as suas propostas — ao mesmo tempo em que ele se manteve firme em posições polêmicas dentro da política americana, classificando as ações de Israel como “genocídio” e descrevendo a expressão “globalizar a intifada” como a representação de um “desejo desesperado de igualdade de direitos”.
— Acho que Mamdani é o político mais empolgante que surgiu da esquerda nos últimos 10 ou 15 anos, e esta eleição parece histórica de várias maneiras. A posição dele, especialmente em oposição ao Trump, me parece muito importante. Parece que estamos sob uma enxurrada de más notícias e coisas horríveis acontecendo, e esta eleição é um exemplo de democracia em ação — disse Grace. — Um momento em que você pode colocar um dedinho na balança da justiça e no que acredita ser o certo no mundo.
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Se por um lado seus posicionamentos fizeram com que ele fosse acusado de antissemitismo — tornando-se alvo crescente de comentários islamofóbicos de conservadores, comparando sua eleição aos atentados do 11 de Setembro —, por outro, especialistas afirmam que a presença online de Mamdani “derruba a torre de marfim” em que muitos políticos se isolam. À NBC, Pranjal Jain, estrategista digital que trabalhou na campanha de influenciadores com Kamala em 2020, destacou que Mamdani sempre aparece “sorridente, abraçando as pessoas” e, principalmente, fazendo um “trabalho de base, voltado para a comunidade”.
— Acho realmente admirável que ele tenha se mantido fiel aos seus valores. E é isso que as pessoas querem ver. Chega desse papo centrista — afirmou. — É importante que possamos ver a opinião dos políticos para saber se ela reflete a nossa ou não. Tenho a sensação de que ele fez campanha porque acredita, de forma autêntica, que seus valores podem ajudar Nova York, e não apenas para conquistar o cargo.
*Reportagem realizada durante a Dag Hammarskjöld Fellowship
