Caso dos cadernos: Cristina Kirchner e outros 86 réus enfrentam maior julgamento de corrupção da História da Argentina
Durante 10 anos, Oscar Centeno, motorista de um alto funcionário dos governos de Néstor e Cristina Kirchner , registrou meticulosamente cada viagem que fazia carregando malas cheias de dinheiro, proveniente de supostos subornos pagos por construtoras em troca de contratos estatais. Ele detalhava horários, rotas, nomes — e até o peso das malas quando não conseguia calcular quantos dólares tinham. Os cadernos escolares em que registrava todas essas viagens foram o ponto de partida para o maior caso de corrupção da História argentina: o chamado "caso dos cadernos". Nesta quinta-feira, começou o julgamento contra Kirchner, acusada de ser a líder do esquema de corrupção pelo qual 19 ex-funcionários do governo e 65 empresários, entre outros réus, também serão julgados. As audiências, que acontecerão semanalmente, estão sendo realizadas virtualmente, com os réus conectados via Zoom, e deve se estender pelos próximos dois anos.
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A ex-presidente de 72 anos, que se diz inocente, já cumpre uma pena de seis anos com tornozeleira eletrônica por outro caso de corrupção e está em prisão domiciliar desde junho. Agora, ela enfrenta possíveis penas de cinco a 10 anos, acusada de liderar uma associação ilícita e de receber milhões de dólares em mais de 200 subornos de empresários. Segundo Gregorio Dalbón, advogado de Kirchner, "a sentença já foi definida", pois se trata de "uma caça às bruxas" e "um ato de vingança".
Cristina Kirchner durante a audiência remota
Reprodução / La Nación
Em publicação no X, Kirchner afirmou que o caso é uma "operação judicial" para desviar a atenção da reforma trabalhista que o presidente da Argentina, Javier Milei, promove. "Uma verdadeira agenda judicial a serviço do ajuste. Não tenho medo. Sei que a história, como sempre, colocará as coisas em seu lugar", escreveu.
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Os advogados da ex-presidente já solicitaram, sem sucesso, o arquivamento do processo, pois duas análises periciais detectaram inúmeras alterações, rasuras e correções feitas por terceiros nas anotações de Centeno. Na semana passada, a Suprema Corte rejeitou mais de 20 recursos apresentados por ex-funcionários e empresários, abrindo caminho para o início do julgamento.
— A maior vergonha judicial que a democracia já teve — afirmou Dalbón.
De acordo com a acusação, a ex-presidente e seu marido, o falecido Néstor Kirchner, organizaram entre 2003 e 2015 "um sistema de arrecadação de fundos para receber dinheiro ilícito com o objetivo de se enriquecerem ilegalmente". Para tanto, estabeleceram "acordos com empresários proeminentes de empresas nacionais e internacionais, por meio dos quais obtiveram benefícios recíprocos". A acusação alega que "os líderes e organizadores dessa estrutura paraestatal conceberam um circuito de arrecadação de fundos focado principalmente na concessão de contratos de obras públicas e/ou serviços, e outros benefícios relacionados".
Caso dos cadernos
O processo judicial centra-se nos pagamentos feitos a empresários, detalhados nos cadernos do motorista Centeno, nos esquemas utilizados para atribuir contratos de transporte ferroviário e projetos rodoviários, e na formação de cartel em obras públicas. Além de Kirchner, os acusados incluem ex-ministros, secretários, subsecretários e diretores estatais, bem como Centeno e outro ex-motorista, agora executivos de grandes empresas de construção, energia e transportes.
As viagens documentadas por Centeno — que era motorista de Roberto Baratta, sub-secretário do Ministério do Planejamento Federal — vieram à tona em 2018, em uma investigação de Diego Cabot no jornal argentino La Nación . Em paralelo, o jornalista forneceu aos tribunais fotocópias dos cadernos de anotações. O esquema detalhado de corrupção kirchnerista insinuado nessas anotações foi confirmado nas semanas seguintes por vários dos empresários nelas mencionados, que concordaram em depor como testemunhas.
Algumas anotações do motorista acusado, Oscar Centeno.
Divulgação / Procuradoria-geral da Argentina
Carlos Wagner, ex-presidente da Câmara Argentina da Construção e proprietário da construtora Esuco, forneceu ao tribunal uma lista de empresas que, por meio da Casa legislativa, pagaram quantias em dinheiro não declaradas para obter contratos de infraestrutura. Ele também afirmou que o esquema ilegal de arrecadação de fundos teve início durante a presidência de Néstor Kirchner (2003-2007) e continuou durante os dois mandatos de sua esposa e sucessora, Cristina Kirchner (2007-2015).
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Em setembro, alguns empresários acusados tentaram uma manobra para evitar o julgamento. Ofereceram ao tribunal cerca de US$ 15 milhões (cerca de R$ 80 milhões, na cotação atual), além de um apartamento em Miami e um iate, para serem liberados do processo. A promotora Fabiana León ouviu as ofertas e as rejeitou categoricamente
— Não há preço que possa ser atribuído ao dano institucional causado — afirmou León, na ocasião.
Crise de liderança
Amada por seus seguidores e detestada por seus detratores, Kirchner lidera o peronismo há mais de uma década e é a atual presidente do Partido Justicialista, legenda da oposição. O início do julgamento coincide com um momento de crise para este histórico partido nacionalista e industrialista, cuja ala de centro-esquerda é conhecida como kirchnerismo.
A contundente derrota deste movimento frente ao pequeno partido de Milei nas eleições de meio de mandato de 26 de outubro refletiu o desgaste do kirchnerismo, mesmo após dois anos de um duro ajuste fiscal.
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Em 2019, Kirchner escolheu Alberto Fernández para a Presidência e o acompanhou como vice. Depois, distanciou-se e o criticou duramente pela crise econômica que resultou na vitória de Milei em 2023.
Ela também costuma antagonizar com Axel Kicillof, o governador da província de Buenos Aires que se projeta como um possível substituto frente à hegemonia de Kirchner e a quem ela acusou de "errar na estratégia eleitoral".
— O peronismo está passando por uma crise de liderança, que terá que ser resolvida nos próximos dois anos, antes da formação das listas para as eleições presidenciais de 2027 — disse o nanalista político Raúl Timerman. — O mais provável é que haja uma disputa interna, onde diferentes candidatos se apresentarão.
(Com AFP e La Nación)
