Artigo: Futebol e Etnocentrismo
O tradicional Mundial de Clubes, disputado ao fim da temporada sul-americana de futebol masculino e no meio da temporada europeia, passou a ser chamado pela FIFA de Copa Intercontinental. Mais do que uma simples troca de nome, houve uma mudança significativa em seu formato. O campeão europeu vai agora direto para a final, enquanto os campeões dos outros continentes precisam disputar algumas partidas preliminares para definir quem terá o direito de enfrentar o finalista já pré-definido.
No clássico O que é etnocentrismo, o antropólogo Everardo Rocha define o termo como a visão segundo a qual o próprio grupo é tomado como centro de tudo, e os demais são interpretados a partir dos valores e modelos desse grupo. Em outras palavras, é a tendência de naturalizar a própria cultura e exotizar a do outro, produzindo narrativas que reforçam identidades e diferenças frequentemente baseadas em estereótipos negativos.
Embora o etnocentrismo seja um elemento estrutural presente em todas as culturas, ele foi rejeitado por antropólogos adeptos do relativismo cultural por ser nocivo às relações entre os povos, produzindo desigualdades e hierarquias autoritárias e ilegítimas entre nações.
Mas o que o etnocentrismo tem a ver com a atual Copa Intercontinental de clubes da FIFA? Ora, o formato vigente reflete um padrão colonialista que coloca a Europa como centro definidor das regras e ocupante do topo hierárquico — que, por isso, não precisa se colocar à prova. Aos “outros” (o resto do mundo) impõe-se a necessidade de se enfrentarem entre si para ter a chance de desafiar o centro.
O fato de os clubes europeus terem se tornado financeiramente poderosos nas últimas décadas não lhes dá o direito de obter vantagens esportivas em uma competição internacional. É interessante lembrar que muitos desses clubes reclamaram da Copa do Mundo de Clubes organizada pela FIFA no meio do ano, alegando que estavam no fim da temporada enquanto nós estávamos no meio — quando, historicamente, ao final do ano e ao término da nossa temporada, um clube sul-americano ia disputar o então chamado Mundial (agora, Intercontinental).
A perspectiva etnocêntrica (ou eurocêntrica) fica escancarada no atual formato e reacende a velha relação entre colonizadores e colonizados, que já deveria ter sido soterrada há muitos anos.
A Conmebol, a Concacaf e a Confederação Africana de Futebol, por exemplo, devem manifestar-se pública e oficialmente contra o atual formato do torneio, exigindo uma competição mais equânime e que respeite plenamente os princípios esportivos.
Poder econômico já é uma vantagem por si só, mas esse poder não pode se transformar em um benefício esportivo estabelecido a priori. Nenhuma competição esportiva pode definir privilégios antecipados sem justificativa. E, em um esporte como o futebol — no qual tantas vezes vemos um time tecnicamente mais fraco superar um adversário mais qualificado em uma única partida — conceder vantagem a uma equipe em detrimento de outras deteriora o sentido de incerteza do resultado, marca fundamental da atração que essas partidas exercem sobre o sem-número de torcedores mundo afora.
A Copa Intercontinental deveria ser o ponto de encontro entre equipes campeãs de diferentes continentes, disputando um reconhecimento internacional e respeitando suas alteridades. No formato atual, porém, o torneio termina por reproduzir a relação etnocêntrica que a Europa historicamente manteve com países de outros continentes — independentemente de qual equipe saia vencedora.
*Sociólogo e Professor da Faculdade de Comunicação Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
