Análise: Foco em ataque a náufragos no Caribe fortalece governo Trump ao ofuscar debate sobre provável ilegalidade de operações contra barcos

 

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À medida o Congresso americano se debruça sobre os detalhes do ataque que matou sobreviventes naufragados da primeira ofensiva ordenada pelo presidente Donald Trump contra um barco, em 2 de setembro, cresce o risco de que uma questão mais ampla seja ofuscada: o debate sobre se Trump e seu secretário de Defesa, Pete Hegseth, levaram as Forças Armadas dos Estados Unidos a cometer crimes em uma série de operações.

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Na quinta-feira, o almirante Frank M. Bradley, comandante da operação de 2 de setembro, exibiu a parlamentares um vídeo do ataque. A apresentação fez parte de um esforço do Congresso para entender sua decisão de ordenar um segundo ataque e determinar se os sobreviventes do primeiro ainda estavam “em combate” ou se estavam tecnicamente naufragados — o que tornaria ilegal matá-los em situação de conflito armado.

Narrativas conflitantes têm surgido no Pentágono, cada uma redefinindo a análise. Mas todos os cenários se baseiam em comparar as ações de supostos traficantes de drogas com atividades típicas de combate. As comparações são, no mínimo, forçadas, dizem especialistas jurídicos, porque as leis de guerra não foram escritas para — e não se aplicam a — situações de tráfico de drogas.

— O debate sobre quando um tripulante naufragado perde a proteção contra ataques perde o foco — disse Geoffrey S. Corn, ex-principal assessor do Exército para questões de direito de guerra. — O verdadeiro problema é a alegação duvidosa e juridicamente ampla de que os EUA estariam autorizados a aplicar prerrogativas de guerra para lidar com um problema criminal.

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Para juristas, a realidade é mais simples: uma lancha desarmada — ainda que transportando cocaína — não é um navio de guerra, e nenhum dos 11 ocupantes da embarcação no ataque de 2 de setembro estava engajado em combate. Isso inclui não apenas os dois sobreviventes iniciais, mas também as nove pessoas mortas na primeira investida.

Execuções sumárias

A ofensiva de 2 de setembro inaugurou a política de Trump de instruir os militares a matar sumariamente pessoas suspeitas de traficar drogas no mar, tratando-as como combatentes inimigos em um campo de batalha. O governo afirma que, desde então, outras 21 embarcações foram atacadas, deixando 87 mortos ao todo. A discussão sobre se essa campanha equivale a assassinato tem ocorrido principalmente entre especialistas em leis que regulam o uso da força armada.

Há décadas, os Estados Unidos lidam com o tráfico marítimo de drogas por meio da Guarda Costeira, que intercepta embarcações e prende suspeitos. O procedimento se assemelha ao que ocorre em terra: policiais que acreditam que alguém está traficando drogas efetuam prisões e, se houver condenação, a pessoa cumpre pena. Ela não é executada.

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Seria criminoso se agentes simplesmente metralhassem supostos traficantes nas ruas. Da mesma forma, uma força militar não pode alvejar civis, e ser suspeito de crime não retira esse status. Em tempos de paz, atacar um civil é assassinato. Em conflito armado, atacar um civil é crime de guerra.

Para justificar as mortes, Trump declarou que os EUA estão em “conflito armado” com cartéis de drogas e que tripulações de barcos de tráfico seriam “combatentes” — apenas porque ele assim “determinou”. O Congresso não autorizou tal conflito, mas um parecer de assessores jurídicos nomeados por Trump no Departamento de Justiça endossa essa visão. Segundo pessoas que leram o documento, o texto argumenta que as drogas supostamente transportadas pelas embarcações constituem alvos militares legítimos, já que os cartéis poderiam usar os lucros para financiar suas supostas atividades de guerra.

Narrativas em conflito

Fora do governo, é difícil encontrar especialistas que concordem que os EUA estejam realmente em um conflito armado. O problema central é que traficar drogas ilegais, embora seja crime grave, não é o mesmo que realizar um ataque armado. Quando o governo tenta apresentar justificativas concretas para a tese de Trump, elas tendem a ruir. A Casa Branca destaca as dezenas de milhares de mortes anuais por overdose nos EUA, mas o aumento desses casos na última década é provocado majoritariamente pelo fentanil produzido em laboratórios no México com insumos chineses — e não pela cocaína que chega por barcos da América do Sul.

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Outro argumento apresentado é o de legítima defesa coletiva de países como Colômbia e México, cujas forças de segurança enfrentam grupos armados ligados a cartéis. Mas os presidentes de ambos os países condenaram publicamente os ataques às embarcações. Nesse contexto, uma ampla gama de especialistas em direito sobre uso de força letal considera sem sentido a tese de conflito armado defendida pelo governo. Para eles, Trump e Hegseth têm emitido ordens ilegais às tropas, levando militares a cometer crimes.

Com exceção notável do senador Rand Paul, republicano de Kentucky, a maioria dos parlamentares que classificam os ataques como assassinato está entre os democratas, que não controlam o Congresso. Até recentemente, porém, a maior parte dos republicanos evitava atuar na fiscalização das ações do governo. Um artigo publicado em 28 de novembro pelo Washington Post, que reacendeu o debate ao destacar o segundo ataque de 2 de setembro, levou alguns membros do partido a adotar uma postura mais crítica.

‘Crimes de guerra’

A ênfase no segundo ataque e nas nuances do direito de conflito armado pode acabar beneficiando o governo Trump. A ideia de que algo estava errado especificamente naquele ataque sugere, implicitamente, que o primeiro — e todos os demais contra outras embarcações — foram aceitáveis. E essa lógica reforça a noção de que a situação deve ser analisada sob a ótica de um conflito armado.

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A grande questão, agora, é se o interesse bipartidário tardio nesse episódio específico vai impulsionar um exame mais amplo de toda a série de mortes que Trump e Hegseth levaram as Forças Armadas a executar, disse Rebecca Ingber, professora da Faculdade de Direito Cardozo e ex-especialista em direito de guerra do Departamento de Estado.

— Há o risco de que o foco no segundo ataque e, especificamente, na conversa sobre ‘crimes de guerra’ alimente o enquadramento equivocado do governo e oculte o fato de que toda a campanha de ataques a barcos é assassinato, ponto final — disse. — A justificativa evolutiva do governo para o segundo ataque apenas evidencia o quão absurda é sua argumentação jurídica para a campanha como um todo; a ideia de que transportar drogas seria equivalente a hostilidades de guerra.