A violência da favela às vezes só é sentida na Zona Sul quando não chega a força de trabalho

 

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Complexos. O da Penha e o do Alemão, na Zona Norte do Rio, viraram cenário da barbárie nessa semana: corpos enfileirados no chão à vista de todos, inclusive das crianças que ali vivem sem direito a quase nada. Nem à inocência. Complexo, escrever aqui sobre qualquer coisa que não seja essa realidade. Minha ideia inicial era falar da Chacrinha, a favela ficcional de “Três Graças’’, inspirada na Brasilândia, de São Paulo. Mas a vida real não tem roteirista.

A comunidade da trama das nove, há pouco tempo no ar, já prendeu nossa atenção por seus tipos e enredos. Mas, antes que pudéssemos nos entregar de vez ao conforto da ficção, a realidade chega extrapolando todo e qualquer limite. Na chamada Praça São Lucas, na Vila Cruzeiro, em vez de meninos brincando de bola, gente passeando com cachorro e senhores jogando dominó (não é essa a ideia que fazemos de uma praça?), dezenas de mortos, um ao lado do outro. A gente se sente até culpado por se deixar entreter com uma novela ao lidar com uma notícia como essa, apesar de respiros proporcionados pela arte serem essenciais para nos mantermos vivos num país que tende a nos massacrar. Metaforicamente e na prática, como aconteceu com os policiais e moradores assassinados nessa operação.

Na terça-feira, quando tudo aconteceu, quem vive na Zona Sul carioca, como eu, seguiu a vida numa aparente normalidade. Quando veio o impacto invisível: o comércio sem equipe, as entregas atrasadas, as ausências que denunciam a violência. A maioria dos trabalhadores que move a região mais privilegiada da cidade vive nas áreas onde as ações violentas se deram. Mas se não fosse isso, que atenção as pessoas dariam ao ocorrido? Parece que não, mas muita gente é meio que a Arminda (Grazi Massafera) da trama das nove. Da periferia, a personagem só quer a força de trabalho. Pouco importam a história, os dramas e as dificuldades enfrentadas por Gerluce (Sophie Charlotte), a cuidadora de sua mãe, que a ajuda em sua mansão. E não, eu não estou dizendo que um empregador tenha a responsabilidade sobre a dura rotina de cada um de seus funcionários. Zelar pelos direitos básicos de qualquer cidadão, como segurança e direito de ir e vir, é dever do Estado. Mas eu falo de humanidade, de responsabilidade social. De entender que algumas realidades que parecem distantes de nós estão totalmente integradas à nossa vida, por mais que muita gente ainda não tenha se dado conta. Enquanto estamos aqui comentando o fato, tem gente chorando a perda de um filho e tentando seguir. A comunidade recolheu seus mortos praticamente sozinha.

Na favela de “Três Graças”, tem traficante, pastor, o frequentador rico que é consumidor da boca... E muito trabalhador. Assim como nos Complexos do Alemão, da Penha, na Brasilândia ou em qualquer comunidade deste imenso país. Bandidos precisam ser punidos e cumprir suas penas. Já tiros a esmo e granadas vindas do céu não podem ser normalizadas em lugar algum. Um inocente que morra é o fracasso de todos nós. E não foi história de mentirinha. Quem defende que a bala coma solta a qualquer custo e pra todo lado esquece que pode ser o próximo alvo, inclusive. Está todo mundo perdido.