Ucrânia produz míssil em fábricas secretas e aposta em autonomia militar para enfrentar a Rússia

 

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Vendados, sem celulares e proibidos de registrar detalhes da estrutura, jornalistas foram levados a uma fábrica clandestina em Kiev onde a Ucrânia produz uma de suas armas mais estratégicas: o míssil de cruzeiro Flamingo. O sigilo extremo reflete a vulnerabilidade e, ao mesmo tempo, a urgência do esforço de guerra do país, que tenta garantir autonomia militar diante da redução do apoio ocidental.

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De acordo com o jornal inglês BBC, a unidade visitada pertence à Fire Point, uma das principais fabricantes de drones e mísseis da Ucrânia. Duas instalações da empresa já foram atingidas por ataques russos. Ainda assim, a produção segue ativa, com mísseis em diferentes estágios de montagem e trabalhadores protegidos do anonimato absoluto.

Mesmo sob ataques constantes, a Ucrânia acelerou sua indústria bélica. Segundo o presidente Volodymyr Zelensky, mais de 50% das armas usadas hoje na linha de frente já são produzidas internamente. No caso de armamentos de longo alcance, a dependência externa praticamente desapareceu.

No início da guerra, o país se apoiava majoritariamente em arsenais herdados da era soviética. A ajuda militar do Ocidente foi crucial para modernizar as forças armadas, mas, ao longo do conflito, a Ucrânia passou a liderar o desenvolvimento de sistemas não tripulados, como drones e robôs de combate. Agora, os mísseis de cruzeiro nacionais ampliam essa capacidade de ataque profundo.

O Flamingo tem alcance estimado em até 3.000 quilômetros — similar ao míssil americano Tomahawk, que os Estados Unidos se recusaram a fornecer a Kiev. A arma lembra o foguete alemão V-1 da Segunda Guerra Mundial: um corpo longo, do tamanho de um ônibus, com um grande motor a jato montado na parte superior. Já foi utilizada em combate, embora a empresa não confirme alvos específicos.

A engenheira-chefe da Fire Point, Iryna Terekh, de 33 anos, diz que o míssil deixou de ser rosa — cor dos primeiros protótipos — para ser pintado de preto. “Ele come petróleo russo”, resume. Ex-estudante de arquitetura, ela afirma que produzir armamento próprio é uma questão de sobrevivência nacional.

Os ataques de longo alcance se tornaram peça central da estratégia ucraniana. Com dificuldades para conter o avanço russo ao longo de uma frente que ultrapassa mil quilômetros, Kiev passou a mirar a infraestrutura econômica do adversário. Segundo o comandante das Forças Armadas da Ucrânia, general Oleksandr Syrskyi, esses ataques já causaram prejuízos superiores a US$ 21,5 bilhões à economia russa apenas neste ano.

Ruslan, oficial das Forças de Operações Especiais, afirma que centenas de ações já atingiram refinarias, fábricas de armas e depósitos de munição em território russo. “O objetivo é reduzir a capacidade militar e o potencial econômico do inimigo”, diz.

A Rússia, porém, mantém vantagem em volume. Lança, em média, cerca de 200 drones Shahed por dia, enquanto a resposta ucraniana é aproximadamente metade disso. Além de alvos militares, Moscou tem atingido infraestrutura civil, provocando apagões em larga escala. “Gostaria de lançar tantos drones quanto eles, mas estamos crescendo muito rápido”, afirma Ruslan.

Fundada após a invasão russa em 2022, a Fire Point produz atualmente cerca de 200 drones por dia. Seus modelos FP1 e FP2, do tamanho de pequenos aviões, já responderam por 60% dos ataques ucranianos de longo alcance. Cada unidade custa cerca de US$ 50 mil — um terço do valor de um Shahed russo, produzido em escala de quase 3.000 por mês.

Apesar do avanço, a Ucrânia ainda depende de apoio externo, sobretudo em inteligência, recursos financeiros e sistemas de mira. Ainda assim, a empresa adotou a diretriz de usar o máximo possível de componentes nacionais, evitando peças da China e dos Estados Unidos.

A desconfiança em relação a Washington cresceu após a interrupção do envio direto de ajuda militar americana sob o governo de Donald Trump. Até o fim de 2024, os EUA haviam fornecido quase US$ 70 bilhões em apoio bélico. Desde então, o modelo passou a ser a compra indireta de armas por países europeus da Otan — um arranjo que não compensou totalmente a lacuna deixada.

Para Terekh, produzir armas próprias é a única garantia real de segurança. Ela classifica as atuais negociações de paz como “conversas de capitulação” e defende que a experiência ucraniana sirva de alerta ao restante da Europa. “Somos um exemplo sangrento do que acontece quando um país não está preparado para a guerra”, afirma.