Submarinos, tarifas e K-Pop: reunião da Apec em Gyeongju entregou pacote de vitórias para o governo sul-coreano

 

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Logo após assumir a Presidência da Coreia do Sul, em junho, Lee Jae-myung parecia focado em passar ao mundo a imagem de que seu país, que meses antes havia enfrentado uma tentativa de golpe, virou a página, e que estava presente e ativo no cenário internacional. Um elemento central dessa estratégia era a reunião de líderes do fórum da Apec, a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico, em Gyeongju, na semana passada, que contou com a participação dos líderes de algumas das maiores economias do planeta, e pavimentou uma série de acordos que Lee poderá ostentar ao seu público interno.

— Sediar a Apec em Gyeongju foi construído como o primeiro grande teste de “diplomacia pragmática” do presidente Lee, e como uma vitrine para reposicionar a Coreia do Sul como potência média com capacidade de definir agendas — afirmou ao GLOBO Alexandre Coelho, coordenador do curso de pós-graduação em Política e Relações Internacionais da Fespsp. — Isso sinaliza ambição de subir de patamar em liderança regional enquanto administra a rivalidade EUA-China.

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O primeiro troféu de Lee veio antes do início da cúpula. Em uma reunião com o presdente americano, Donald Trump, já na Coreia do Sul, ele finalizou um acordo para reduzir a tarifa aplicada sobre as exportações para os EUA dos 25% iniciais para 15%, que incluiu ainda a promessa de injeção de US$ 350 bilhões na economia americana. O valor será diluído em investimentos financeiros (US$ 200 milhões) e em investimentos na indústria naval americana — inicialmente, Washington queria que os US$ 350 bilhões em dinheiro, mas Seul alegou que isso poderia desestabilizar sua moeda.

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Seguindo um roteiro usado em sua visita à Casa Branca, em agosto, Lee abusou dos cortejos ao líder americano. Ele presenteou o visitante com a réplica de uma das seis coroas do reino de Silla, o primeiro reino unificado da Peninsula Coreana e que ali permaneceu por quase mil anos, e a medalha da Grande Ordem de Mugunghwa, mais elevada honraria do país. Na chegada do Air Force One à Coreia, uma banda marcial tocava “YMCA”, da banda Village People, canção recorrente nos discursos do republicano. A loja de presentes no Museu Nacional de Gyeongju, visitada por Trump, exibiu uma camiseta do presidente dos EUA e um boné vermelho com o nome dos Estados Unidos.

Presidente dos EUA, Donald Trump (E), ao lado do presidente da Coreia do Sul, Lee Jae-myung, observa réplica de uma das coroas de Silla, em Gyeongju, Coreia do Sul

ANDREW CABALLERO-REYNOLDS / AFP

Lee conseguiu o que queria. Além da amenização do tarifaço — embora sem garantir um alívio para sua indústria metalúrgica, afetada por uma tarifa de 50% — recebeu de Trump o sinal verde para a construção do primeiro submarino de propulsão nuclear da Coreia do Sul. Os EUA querem que a embarcação, que não tem data para ganhar os mares, seja construída em seus novos estaleiros, mas os sul-coreanos preferem que seja construída localmente.

— Acumulamos tecnologia e realizamos pesquisas por mais de 30 anos, então acredito que seja razoável — disse o Ministro da Defesa, Ahn Gyu-back, na quarta-feira, durante uma audiência na Assembleia Nacional. — Até agora, discutimos apenas o princípio geral, e não houve menção sobre onde construí-los, se na Coreia ou nos EUA.

Presidentes da China, Xi Jinping (E), e da Coreia do Sul, Lee Jae-myung, durante cúpula da Apec em Gyeongju, na Coreia do Sul

YONHAP / AFP

Outro convidado que deixou mais do que sorrisos em Gyeongju foi o presidente da China, Xi Jinping, cujas relações com Seul passaram por alguns solavancos nos últimos anos. Não foram firmados acordos, mas Lee escreveu em uma publicação nas redes sociais que sua reunião com Xi foi “muito significativa, pois ajudou a restabelecer completamente nossas relações bilaterais e nos recolocou no caminho da prosperidade mútua como parceiros estratégicos de cooperação".

— A relação de cooperação mutuamente complementar que a Coreia do Sul e a China desenvolveram ao longo dos últimos 30 anos ou mais contribuiu enormemente para a ascensão da China como a segunda maior economia do mundo e para o salto da Coreia do Sul rumo ao status de nação desenvolvida com competitividade industrial global — disse Lee, em declarações antes da reunião.

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Lee Jae-myung afirmou que deve visitar a China “em um futuro próximo”, e pediu a Pequim que use sua influência junto à Coreia do Norte para quebrar o isolamento do país e trazê-lo de volta à mesa de negociações, ou para ao menos convencer Pyongyang a retomar os canais de diálogo com o sul. Antes da cúpula da Apec, havia a expectativa de uma reunião entre Kim Jong-un e Donald Trump, o que não aconteceu.

Em outro campo das relações sino-coreanas, diplomatas afirmam que uma proibição informal imposta por Pequim a artistas de K-Pop em 2016, que afetou especialmente grandes apresentações, está prestes a cair, reabrindo o segundo maior mercado musical da Ásia às empresas de entretenimento sul-coreanas.

Diplomacia cultural

Com os demais líderes da Apec —grupo que reúne 21 membros da Ásia, Americas e Oceania, e que concentra 60% do PIB global —, Lee garantiu mais uma vitória: a aprovação de uma declaração final, voltada à integração e conectividade econômica e, pela primeira vez em um texto da Apec, à promoção da indústria criativa, pauta prioritária para Seul.

“Reconhecemos o papel crescente das indústrias culturais e criativas no crescimento econômico e sua contribuição para o fortalecimento dos laços interpessoais, bem como para o incentivo a uma melhor compreensão e respeito mútuo entre as economias membros na região da Ásia-Pacífico”, diz um trecho da declaração.

Centro de convenções de Gyeongju, Coreia do Sul

Kocis Center

A escolha de Gyeongju, Patrimônio Mundial da Unesco, serviu para destacar o passado histórico da Coreia do Sul, e os eventos paralelos, que incluíram palestras com executivos do setor cultural e concertos com artistas de K-Pop, ajudaram a impulsionar o “soft power” do país, hoje um dos pilares de sua diplomacia. Em agosto, durante a reunião de ministros da Cultura do fórum, acompanhada pelo GLOBO*, as referências a grupos como o Blackpink ou a filmes como “Guerreiras do K-Pop” eram onipresentes no hotel que abrigou o evento.

— A realização da Apec em Gyeongju reforça a estratégia de combinar tradição e modernidade para projetar influência global. A chamada "Onda Coreana", que engloba o K-pop, os K-dramas, o cinema e a moda, transformou-se em instrumento de diplomacia pública, moldando a imagem da Coreia como país inovador, dinâmico e culturalmente vibrante — afirma Coelho.

*O jornalista viajou a convite do Ministério da Cultura, Esportes e Turismo da Coreia do Sul