Série sobre o futebol carioca em 1995 revela como esporte e sociedade se transformaram
Eleito meses antes o melhor jogador do mundo, Romário está sem camisa, deitado numa maca dentro de um vestiário. Enquanto recebe uma massagem, permite-se ser filmado e dá entrevista disparando bem-humoradas provocações contra seus então rivais Renato Gaúcho e Túlio. Não há marcas de patrocinadores, tampouco o vestiário é considerado espaço inviolável. A cena é apenas um dos tantos momentos em que a série “1995 — No tempo dos bad boys”, no Globoplay, se revela um retrato de época. Em 30 anos, não mudou apenas o futebol praticado nos gramados. Ao redor do jogo, transformou-se a sociedade e, principalmente, a relação dos ídolos com ela.
Em dado momento do documentário, a areia da praia está tomada de uma multidão que respeita rigidamente o perímetro de uma quadra de futevôlei frequentada pelas estrelas do futebol do Rio. Não é uma cena banal. Os astros de hoje estão, duas vezes por semana, nas telas de TV. No mais, compartilham nas redes sociais as raras cenas que permitem tornar públicas de suas vidas pessoais. Eles se exibem a partir de uma espécie de clausura, mas, num mundo em que viver é postar, parece o bastante para transmitir aos fãs a sensação de intimidade.
Nos anos 1990, ídolos eram personagens do cotidiano carioca, absolutamente incorporados à vida da cidade. Era possível topar com um deles sob a luz do sol ou das boates. Eles existiam além dos gramados e dos vídeos compartilhados no Instagram. Aquilo parecia encurtar distâncias.
A presença de Romário, Túlio, Edmundo e Renato no Rio era também o casamento perfeito entre o espírito da cidade e jogadores tão hábeis com a bola quanto com as palavras. Havia uma permissividade maior na promoção dos jogos, nos desafios e nas provocações. Talvez porque éramos uma sociedade menos violenta, menos tensa. O futebol vivia um total descontrole na guerra das torcidas organizadas, mas fora desses grupos havia um público que se permitia rir.
Mas este não é um exercício de saudosismo. Porque, em muitos casos, mudamos para melhor. O futebol dos anos 1990 existia num contexto tomado pelos excessos do politicamente incorreto: piadas racistas, misóginas, homofóbicas. Cultuados por colecionar namoradas cobiçadas, alguns daqueles astros eram ícones de uma época de objetificação da mulher, tratada como troféu ostentado pelos famosos da ocasião. Não bastava fazer gols, a opinião pública promovia uma competição no terreno das conquistas. Não que tenhamos nos livrado desse tipo de pensamento, mas evoluímos.
A narrativa que cercava os jogadores também romantizava condutas que, hoje, são menos aceitas — como prova o termo “bad boys”. O “treinar pra quê?”, associado a Romário, reforçava uma crença de que tinha mais valor quem era capaz de ganhar com menor esforço, e não quem buscava a sua melhor versão. Admirava-se os capazes de combinar gols e peripécias noturnas. Desde a volta ao Brasil, no auge da carreira, Romário colecionou gols, mas também lesões, além dos folclorizados atrasos ou faltas a treinos. Os ídolos de 1995 seriam geniais hoje, mas o jogo exigiria outros hábitos.
Mudou a sociedade, mudaram os valores — comportamentais e financeiros. Não é mais possível trazer para o Brasil o melhor jogador do mundo, muito menos pelos US$ 4,5 milhões que custou Romário. As estrelas se tornaram menos acessíveis, as pessoas são menos tolerantes, o futebol parece menos leve... Por outro lado, somos mais vigilantes contra a misoginia e o politicamente incorreto. O mundo é uma permanente rota de transformação, não necessariamente de evolução.
