Rede elétrica colossal: saiba como a China leva energia limpa para mover milhões de carros elétricos e trens a 300 km/h?
A linha de energia começa em um deserto remoto no noroeste da China, onde vastos conjuntos de painéis solares e turbinas eólicas geram eletricidade em escala monumental. Ela serpenteia em direção ao sudeste, seguindo um antigo rio entre cadeias de montanhas, até chegar à província de Anhui, próxima a Xangai — região com 61 milhões de habitantes e sede de alguns dos fabricantes de carros elétricos e robôs mais bem-sucedidos do país.
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Essa é apenas uma entre 42 linhas de energia de ultra-alta tensão da China, cada uma capaz de transportar mais eletricidade do que qualquer linha de transmissão dos Estados Unidos. Isso se deve, em parte, ao uso de tecnologia que torna o sistema chinês muito mais eficiente do que em quase qualquer outro lugar do mundo. O feito é resultado das ambiciosas políticas energéticas nacionais e da pouca resistência dos moradores locais — ainda que alguns relatem sentir pequenos choques elétricos ao segurar varas de pescar metálicas sob os cabos.
“Desde que você não pesque diretamente embaixo dos fios e evite que a linha de pesca encoste neles, está tudo bem”, diz Shu Jie, técnico em ar-condicionado, exibindo um peixe de 15 centímetros recém-pescado.
O desafio da distância e a modernização da rede
A rápida adoção de tecnologias de energia limpa na China — em ritmo ainda mais acelerado do que o previsto pelo governo — criou uma demanda insaciável por eletricidade. Metade dos carros novos vendidos no país é movida a bateria, e seus 48 mil quilômetros de ferrovias de alta velocidade funcionam totalmente com energia elétrica. Em abril, fontes eólicas e solares responderam por mais de um quarto da eletricidade gerada no país, um marco alcançado por poucos.
Grande parte dessa energia limpa, porém, é produzida nas regiões ensolaradas e ventosas do oeste e do norte, longe da maioria da população e das fábricas. Mais de 90% dos 1,4 bilhão de habitantes vivem no leste, onde dias nublados, ventos fracos e rios lentos limitam o potencial energético. Para levar eletricidade aonde ela é mais necessária, Pequim aposta na rápida modernização de sua rede.
Os planejadores centrais, que subestimaram a velocidade com que o país adotaria fontes renováveis, estão construindo a primeira rede nacional de linhas de transmissão de energia de ultra-alta tensão do mundo.
Um contraste com a política energética dos EUA
A expansão da rede chinesa contrasta fortemente com a política de “Perfure, baby, perfure” do ex-presidente Donald Trump, que defendia o aumento da produção de combustíveis fósseis e a reversão de incentivos a energias limpas.
Em julho, o Departamento de Energia dos Estados Unidos cancelou o compromisso de conceder um empréstimo de US$ 4,9 bilhões à construção da linha Grain Belt Express, que levaria energia eólica do Kansas a cidades de Illinois e Indiana. O projeto de 1.280 quilômetros — menor do que dezenas de linhas já concluídas na China — enfrentou resistência de proprietários rurais e legisladores republicanos.
Mesmo antes da gestão Trump, outros projetos de energia renovável nos EUA já esbarravam em longos processos de licenciamento: alguns levaram até 17 anos para aprovar linhas de apenas algumas centenas de quilômetros.
Enquanto isso, a China investe pesado em tecnologia de corrente contínua, que permite transportar eletricidade por longas distâncias com perdas mínimas — uma vantagem em relação à maioria das redes de alta potência no resto do mundo.
As linhas mais eficientes do país têm implicações diretas na corrida global contra as mudanças climáticas. Elas determinarão a rapidez com que a China poderá reduzir seu uso de carvão — o maior do planeta — e, consequentemente, suas emissões de gases de efeito estufa, que já superam as dos Estados Unidos e da União Europeia somadas.
Avanço tecnológico e ambição nacional
A rede de ultra-alta tensão vem ajudando a resolver um dilema histórico dos planejadores chineses: o excesso de energia renovável gerada nas regiões ocidentais, onde há sol, vento e água em abundância.
Em 2020, o presidente Xi Jinping fixou a meta de triplicar a capacidade de geração solar e eólica até 2030. O país alcançou esse objetivo seis anos antes do previsto, surpreendendo até mesmo a gigante estatal State Grid.
“A State Grid é boa em construir coisas — mas não seis anos antes do cronograma”, afirmou David Fishman, consultor de eletricidade em Xangai. Nos últimos meses, cerca de 10% da energia eólica e solar produzida na China ficou sem uso, em parte porque a rede ainda não consegue absorver toda a geração disponível.
“Para aumentar a capacidade do sistema de incorporar novas fontes, precisamos acelerar a construção de projetos que deem suporte à energia renovável”, declarou Du Zhongming, diretor da Administração Nacional de Energia, em entrevista coletiva no ano passado.
A China já consome o dobro de eletricidade que os Estados Unidos e planeja triplicar o número de linhas de ultra-alta tensão até 2050. Dados oficiais mostram que, no fim de 2024, 19 linhas operavam a 800 quilovolts e outras 22 a 1.000 quilovolts. Uma delas, a que termina em Guquan, transmite energia a 1.100 quilovolts — suficiente para abastecer mais de sete milhões de lares americanos, ou até 50 milhões de residências chinesas.
Para se ter dimensão, os Estados Unidos contam apenas com algumas linhas de 765 quilovolts, totalizando 3.200 quilômetros — o equivalente a uma única linha chinesa.
Impactos ambientais e riscos geográficos
O desenvolvimento das linhas de ultra-alta tensão ganhou impulso em 2009, durante a crise financeira global, quando o governo chinês investiu pesadamente em infraestrutura para conter o desemprego e evitar uma desaceleração econômica. Na mesma época, foram lançados planos ambiciosos para veículos elétricos e trens de alta velocidade.
Em 2011, após o colapso de reatores nucleares em Fukushima, no Japão, Pequim adiou projetos de novas usinas nucleares e intensificou a construção de linhas que conectam áreas remotas às regiões industriais.
Essa estratégia ajudou a reduzir drasticamente as emissões de poluentes e gases de efeito estufa. Um estudo da Universidade de Chicago, publicado em agosto, apontou queda de 41% na poluição do ar desde 2014 — o que elevou em quase dois anos a expectativa média de vida da população.
Pequim, antes símbolo da poluição atmosférica, encerrou o uso de carvão para gerar eletricidade em 2020 e hoje é parcialmente abastecida por energia eólica vinda de centenas de quilômetros de distância.
Mas o avanço também traz vulnerabilidades. Muitas das linhas cruzam regiões montanhosas no noroeste do país, onde o relevo exige que sejam agrupadas ao longo de um afluente do Rio Amarelo, sujeito a enchentes e abalos sísmicos.
Por décadas, outros países discutiram projetos semelhantes, mas encontraram resistência popular à instalação de linhas de alta potência. A China avança mais rápido graças ao seu modelo de planejamento centralizado e ao controle rígido da dissidência pública.
Entre orgulho nacional e preocupação local
Na província de Anhui, onde passa a maior linha de ultra-alta tensão da China, alguns moradores expressam desconforto, ainda que reconheçam a importância nacional do projeto.
A estrutura transporta energia solar e eólica — e parte gerada por carvão — do deserto de Gurbantünggüt, em Xinjiang, até grandes centros urbanos do leste, como Xangai, Hangzhou e Nanquim.
“Quando você segura um guarda-chuva na chuva, ele solta faíscas e você fica dormente”, relata Xu Shicai, gerente de uma fazenda em Xuchong, vila onde os cabos passam a menos de 30 metros das casas. “Na pesca, é difícil segurar a vara sob os fios porque as mãos formigam.”
Um pequeno lago da vila, logo abaixo das torres, exibe uma placa de “Proibida a pesca”, com a caricatura de um esqueleto eletrocutado e a foto de um homem gravemente queimado. Ainda assim, muitos insistem em pescar ali pela proximidade.
Xu afirma aceitar a presença da linha por entender sua relevância nacional, mas teme que ela afaste visitantes. “Já me acostumei”, diz. “Mas, sinceramente, não queremos mais linhas construídas aqui.”
