Que Jogo É Esse: Neymar e o espelho que não quebrou
Há jogadores que envelhecem. Há jogadores que amadurecem. E há Neymar, que parece ter apostado todas as fichas no espelho — aquele reflexo idealizado onde ele ainda é, simultaneamente, o garoto da Vila, o craque do Barcelona e o adulto promissor que nunca se concretizou por inteiro. O problema é que, quando o espelho não acompanha a vida real, o mundo começa a embaçar. E, bem… o Santos também.
Antes que algum psicanalista legítimo reclame: sim, este é um texto de um analista esportivo. Não vai cair na sua prova de psicologia nem substituir a terapia de ninguém. Mas às vezes, para explicar um jogador que passa 15 anos repetindo as mesmas cenas, só a bola não basta. Aí a gente recorre a Jacques Lacan — psiquiatra e psicanalista francês, discípulo rebelde de Freud, famoso por escrever difícil, pensar complicado e transformar o espelho em teoria. Foi ele que propôs a ideia de que nos formamos primeiro a partir de uma imagem idealizada de nós mesmos. Ou seja: antes de sermos quem somos, acreditamos firmemente no personagem que criamos.
E, no caso de Neymar, seu personagem sempre foi irresistível. Ele nasceu jogando mais do que qualquer um ao redor, cresceu acreditando que resolveria tudo sozinho e passou a vida inteira sendo tratado como um capítulo permanente da própria lenda. Não é culpa dele. É só que o espelho nunca foi atualizado.
Por isso, uma parte da torcida — e do país — ainda insiste em olhar para Neymar como se ele não tivesse feito check-in nos 33 anos, não estivesse acumulando lesões e não tivesse voltado ao Santos para viver, na prática, o retorno de uma adolescência esportiva que já era para ter ficado resolvida.
E é aqui que entram as cenas que a gente já conhece. Em 2010, quando o jovem Neymar discutiu com Dorival Júnior à beira do campo, reclamando de uma decisão do treinador, ele via, no reflexo, o Neymar ideal: genial, indispensável, inquestionável. O técnico, a bronca, a ordem: nada daquilo cabia na imagem que ele tinha de si mesmo. Era um garoto dizendo ao espelho: “Isso aqui é meu.” O futebol brasileiro, naquela época, até achou graça.
Quinze anos depois, no Maracanã, na partida contra o Flamengo, tivemos o replay. O enredo mudou um pouco: o craque está mais lento, mais pesado, mais vulnerável — mas o espelho, internamente, continua o mesmo. Ele é substituído num jogo complicado, fica irritado, protesta e ruma ao vestiário antes do apito final. Se olhar rápido, parece outra história. Mas é exatamente a mesma: Neymar brigando não com Vojvoda, nem com o Santos, mas com o reflexo que ele não suporta ver envelhecer.
Enquanto isso, o real (essa palavrinha tão adorada pelos lacanianos) é duro e pouco glamouroso: o Santos afundado na briga contra o rebaixamento, ambiente tenso, desempenho irregular, e uma seleção brasileira que já se pergunta, com mais sinceridade do que antes, se ainda precisa dele. O Neymar idealizado continua vivo dentro do jogador; o Neymar real, porém, está preso num conflito que o deixa irritado, impaciente, sensível. E imprevisível.
No intervalo do jogo, ele disse: "No terço final tem que me procurar mais, é a única forma de fazer um gol.” Depois, na substituição, veio o estouro: “Vai me tirar?”, questionou o banco, antes de deixar o campo e (não) ver o time, que perdia por 3 a 0, reagir com dois gols no fim e quase empatar.
Quando sai de cena como quem abandona a própria história antes do apito final, ele não está apenas desrespeitando o time. Está se defendendo da imagem que o machuca. Ver o Santos levar três no Maracanã enquanto ele sente que poderia — ou deveria — resolver tudo é como olhar no espelho e ver uma versão de si que já não obedece às suas ordens. É o tipo de coisa que sempre fez Neymar explodir.
A grande ironia é que, mesmo assim, o Brasil continua obcecado por ele. Lacan ajuda aqui também: desejo é desejo do outro. Desejamos ver em Neymar aquilo que projetamos nele ao longo dos anos. E projetamos muito. O país inteiro comprou o espelho por quatro Copas, desde 2010, quando muito jovem, nem convocado ele foi. E agora, que o vidro vem rachando, seguimos tentando colá-lo com esperança, memes, nostalgia... e aquela fé teimosa de que algo diferente aconteça em 2026.
A verdade dura, e humana, é que Neymar nunca conseguiu se separar do menino prodígio. O espelho que o formou continua ali, devolvendo o mesmo personagem brilhante, mesmo quando o corpo já não o acompanha. E é justamente essa defasagem dolorosa que produz o Neymar de hoje: genial em lampejos, irritado em sequência, perdido entre quem já foi e quem é agora.
E a convocação? Nas últimas listas de Carlo Ancelotti, o nome dele quase não apareceu. Sem ser chamado, surgiu apenas como pergunta — respondida com a polidez neutra que treinadores usam quando não querem se comprometer. Sua vaga para a Copa de 2026 hoje é, mais do que nunca, um reflexo do passado, não do presente. Para recuperá-la, ele precisa fazer algo que talvez seja o maior desafio da carreira: convencer o espelho interno e o técnico italiano, ao mesmo tempo.
No fim das contas, Neymar não precisa que a gente escreva sobre Lacan. Precisa talvez só de um novo espelho — um que aceite o homem, e não apenas o mito. E que permita que o jogador finalmente veja grandeza naquilo que ele é hoje, não no que insiste em tentar repetir. Porque, por enquanto, quem envelheceu não foi Neymar. Foi apenas a realidade. E ele está correndo atrás dela com um retrovisor nas mãos.
THALESPÉDIA
A comparação apareceu forte nas redes esta semana. Fui atrás dos números, organizei tudo e trago aqui na forma mais apurada e comparação mais justa. Tirei o Romário da equação porque o caso dele é outro planeta — 2000 foi uma distorção da natureza. E faltavam dois anos para a Copa.
Mas o ponto é este:
Ronaldo Fenômeno aos 33 anos (2009): 23 gols, 4 assistências, campeão da Copa do Brasil pelo Corinthians. Ficou fora da Copa de 2010.
Ronaldinho Gaúcho aos 33 (2013): 17 gols, 14 assistências, campeão da Libertadores pelo Atlético-MG. Ficou fora da Copa de 2014.
Neymar aos 33 (2025): 6 gols, 3 assistências, com o Santos na zona de rebaixamento. É pauta diária para 2026.
E aí mora a questão. Não é só sobre Neymar merecer ou não a discussão na seleção — é sobre como o vácuo técnico da seleção hoje torna tudo assunto. Ronaldo em 2010 e Ronaldinho em 2014 não eram nem debate. Neymar rumo a 2026 virou o maior elefante branco da sala do futebol brasileiro.
