O Crítico Antigourmet | Feijoada do Jiquitaia: entre a tradição e a timidez

 

Fonte:


Este texto foi publicado na newsletter semanal O Crítico Antigourmet, em que Ian Oliver faz resenhas da gastronomia de São Paulo. Quer receber o conteúdo antes da publicação on-line? Clique aqui para se inscrever.

Jonathan Gold dizia que comida é porta de entrada para comunidades. A feijoada, nesse sentido, é a porta mais larga do Brasil: por ela passam memórias de sábado, conversas longas, a democracia da mesa onde todos comem do mesmo caldeirão. Se não é o prato nacional por excelência, eu não saberia dizer qual é. Tão mítica que carrega por vezes narrativas fantasiosas que precisam ser desfeitas. Não, ela não nasceu nas senzalas — mito que romantiza a brutalidade da escravidão e ignora a complexidade histórica do prato.

A verdade é mais interessante que o mito. Cozinhar leguminosas com partes de carne é tradição que atravessa fronteiras: o cozido à portuguesa, o cassoulet francês, a fabada asturiana, o bollito misto italiano. São pratos que compartilham uma gramática culinária comum — a alquimia de transformar grãos, gordura e tempo em algo maior que a soma das partes. A feijoada brasileira é resultado de contágios entre culinárias, de adaptações aos ingredientes locais, de uma lenta construção de identidade através do paladar. Num país onde “fazer o arroz com feijão” virou sinônimo de “fazer o básico”, acabamos escondendo a complexidade e a minúcia necessárias para executar com esmero este prato tão popular.

Resgate da cozinha regional

O Jiquitaia é restaurante que há mais de uma década se dedica a resgatar e refinar a cozinha brasileira. O nome — jiquitaia, molho de pimenta com sal de origem indígena — já anuncia a proposta: trazer à tona raízes culinárias que São Paulo, em sua cosmopolita amnésia, insiste em esquecer. Lá, tucupi do Norte, quiabo de Minas, jiló do Nordeste dividem espaço com técnica apurada e respeito pela tradição. É o tipo de espaço que valoriza o que comemos em casa, mas elevado, tecnicamente depurado, digno de sair para comer.

A feijoada do Jiquitaia, servida às quartas e aos sábados é boa. Mas não é ótima. O feijão está no ponto — nem duro, nem desmanchando. Os grãos mantêm integridade estrutural, aquela textura mastigável que Luca Turin, ao descrever perfumes, chamaria de “substancial”. A couve é fininha, refogada rapidamente, preservando a mordida e o verde-escuro que indica clorofila intacta. A farofa é crocante, seca, sem aquela oleosidade deprimente que a transforma em mingau cansado. Vinagrete e laranja, cortados uniformemente, cumprem sua função de contraponto ácido à gordura. O trabalho é cuidadoso. É possível notar a preocupação com qualidade. 

Complementos da feijoada: "O trabalho é cuidadoso. É possível notar a preocupação com qualidade (...) O arroz está ligeiramente sobrecozido"

Ian Oliver

O arroz está ligeiramente sobrecozido, no meio termo entre juntinho e soltinho — ou seja, em lugar nenhum. Arroz para feijoada deve ser impecavelmente solto, cada grão distinto, com aroma de refogado. Aqui, alguns grãos começam a se grudar, sinal de que passou do ponto ou foi mexido demais durante o cozimento.

O caldo não tem o gosto de embutido industrializado da maioria das feijoadas, o que é bom. Nota-se uma preocupação em escolher linguiças e embutidos mais artesanais. É, porém, mais ralo do que espesso. Falta aquela viscosidade colagenosa, brilhante, que resulta de cozimento longo e lento, onde ossos e cartilagens liberam gelatina e o líquido ganha corpo, presença, peso na boca.

Prato tímido

O caldo do Jiquitaia é levemente turvo, não brilhante: possivelmente resultado daquela técnica de amassar o feijão para engrossar o caldo. É um atalho que boa parte das feijoadas segue. Não há aquele brilho translúcido que indica extração profunda de sabor. A proporção também poderia ser melhor: há mais carne do que grãos de feijão, equívoco também generalizado na maior parte das feijoadas de São Paulo.

E então vem o problema mais desconcertante: o feijão é inexplicavelmente sem sal. É como se, ao tentar evitar o defeito mais comum das feijoadas (sal em excesso típico das feijoadas com embutidos industriais, aquele tsunami salino que te obriga a beber litros de água), o Jiquitaia tivesse ido para o extremo oposto. O resultado é um prato tímido, com pouca potência aromática e carnosa.

Feijoada do Jiquitaia: "o feijão é inexplicavelmente sem sal (...) O resultado é um prato tímido, com pouca potência aromática e carnosa"

Ian Oliver

François Simon, crítico francês temido por sua franqueza, diria que o Jiquitaia cometeu o pecado da elegância mal aplicada. Há pratos que pedem sutileza — um sashimi, uma vieira crua, um consommé. Feijoada não é um deles. Feijoada pede robustez, intensidade. No contexto deste prato, a robustez deveria prevalecer em detrimento da elegância contida.

Longe de ser ruim, a feijoada executiva do Jiquitaia entrega os R$ 89 cobrados. Sustenta-se, é bem executada tecnicamente, feita com ingredientes de qualidade. Mas poderia ser ótima. Marcelo Corrêa Bastos demonstrou, em mais de uma década de Jiquitaia, que domina a cozinha brasileira. Conhece os ingredientes, respeita as tradições, tem técnica madura. Mas esta feijoada específica precisa de ajustes. Mais tempo no fogo para o caldo ganhar corpo. Mais sal para o feijão ter sabor. Mais grãos na cumbuca para fazer jus ao nome do prato. Ao tentar escapar à tradição do sabor carnoso industrializado, o Jiquitaia acabou recaindo em uma timidez artesanal.

Todas as visitas do crítico são pagas pelo GLOBO e feitas sem qualquer aviso prévio.

Jiquitaia

📍 Endereço: R. Cel. Oscar Porto, 808 – Paraíso, São Paulo – SP

🍽️ Culinária: Brasileira regional

👨‍🍳 Chef: Marcelo Corrêa Bastos

👏 Reconhecimento: Guia Michelin (recomendado)

⏰ Horário de Funcionamento:

Terça a sexta: 12h–15h (almoço), 19h–22h30 (jantar)

Sábado: 12h–16h (almoço), 19h–22h30 (jantar)

Domingo: 12h–16h (almoço)

Segunda: fechado

📞 Telefone: (11) 3051-5638 (WhatsApp)

💲 Preço da feijoada: R$ 89 (versão executiva, light ou completa) Faixa de preço geral: média

🥘 Destaques: Cozinha brasileira que resgata ingredientes regionais (tucupi, jiquitaia, quiabo, jiló), ambiente acolhedor em casa dos anos 1950, ótima carta de cachaças.

👀 Atmosfera: Informal e despretensiosa

📝 Avaliação: ⭐⭐✰✰✰

Classificação: Ruim ✰✰✰✰✰ | Satisfatório ⭐✰✰✰✰ | Bom ⭐⭐✰✰✰ | Muito bom  ⭐⭐⭐✰✰✰ | Excelente ⭐⭐⭐⭐✰ | Excepcional ⭐⭐⭐⭐⭐: