O Crítico Antigourmet | Corrutela: quando sustentabilidade e sabor não são excludentes

 

Fonte:


Este texto foi publicado na newsletter semanal O Crítico Antigourmet, em que Ian Oliver faz resenhas da gastronomia de São Paulo. Quer receber o conteúdo antes da publicação on-line? Clique aqui para se inscrever.

Há restaurantes que usam “sustentabilidade” como escudo para comida sem graça, como se ingredientes orgânicos dispensassem técnica ou tempero. Há outros que cobram fortunas por menus “autorais” que são mais Instagram que substância. E há o Corrutela, de César Costa, que consegue a proeza de ser genuinamente sustentável, tecnicamente competente e absurdamente bem precificado — tudo ao mesmo tempo.

Esta é comida com viés intelectual. Tem estudo, pesquisa, referências que vão além do óbvio. Mas — o que é mais importante — sem perder o foco no sabor. Não é aquela cozinha cerebral que exige dissertação para ser compreendida, onde o conceito importa mais que o gosto. É cozinha que pensa, mas que sabe que pensar sem saborear é joguete intelectual vão.

A refeição começa com pão de fermentação natural grelhado, acompanhado de manteiga fermentada com koji e uma série de petiscos que funcionam como declaração de intenções. A manteiga tem aromas de queijo azul — aquela complexidade funky que vem de fermentação bem conduzida, não de química. É untuosa, salgada na medida, com aquele toque levemente ácido que faz salivar e pedir mais mordidas. Koji, para quem não sabe, é um fungo usado há séculos na culinária japonesa para fermentar soja, arroz, fazer missô, shoyu. Aqui, aplicado à manteiga, cria pontes entre culturas sem soar forçado.

Cogumelo com caráter

Os petiscos que acompanham o pão são onde o Corrutela mostra que entende de sabor. O cogumelo Eryngui marinado em garum tem mordida firme, textura que resiste ao dente, sabor umami profundo que vem de fermentação paciente. Garum — molho de peixe fermentado que os romanos usavam como nós usamos sal — é ingrediente que exige coragem. Mal feito, vira catástrofe olfativa. Bem feito, como aqui, adiciona camadas de complexidade impossíveis de replicar de outra forma. Não é aquele cogumelo mole, aguado, sem personalidade que aparece em tantos restaurantes. É cogumelo com caráter.

A berinjela com chilli oil faria inveja a boa parte dos restaurantes árabes de São Paulo. Tem aquela cremosidade sedosa de um babaganoush bem-feito, mas com o calor do chilli oil trazendo complexidade ao defumado da berinjela. O pimentão na brasa e a cenoura fermentada lembram algo como shiokara — aquela intensidade salgada, fermentada, quase agressiva, que divide opiniões. Não é para todo mundo. Mas é bom, é técnico, é interessante.

O Ato II é simplesmente brilhante. Tomate curado, stracciatella fresca, semente de abóbora caramelizada, azeite de ervas. É prato que tem todos os gostos: ácido-umami do tomate marinado, salino e cremoso da stracciatella, doce da semente caramelizada, amargo da clorofila das ervas. Tem delicadeza. É leve sem ser insosso, complexo sem ser confuso. É o tipo de prato que demonstra maturidade: saber que não é preciso gritar para ser ouvido. Há algo de haicai aqui — aquela economia de meios que os japoneses dominam, onde cada elemento conta, inclusive o silêncio.

Pratos do Currutela: "Há algo de haicai aqui — aquela economia de meios que os japoneses dominam, onde cada elemento conta, inclusive o silêncio. "

Ian Oliver

O polvo grelhado é onde o Corrutela tropeça. Poderia ser menos chewy, um pouco mais macio. O problema não é a técnica de grelhar — as marcas estão perfeitas, a crosta está dourada. O problema é o tempo de cozimento anterior. Dispensaria também a bottarga que vem salpicada por cima. Ela é forte, descaracteriza o sabor do polvo, deixando-o peixoso e defumado demais, como se ele precisasse de ajuda para ter personalidade. Não precisa. Uma glace de peixe ou de dashi por cima realçaria o gosto do polvo sem sufocá-lo.

Os pontos fortes são a erva-doce e a maçã verde fatiadas finamente, além do aioli de ervas. São incríveis. Juntos, criam uma impressão de coleslaw — aquele frescor crocante, levemente anisado da erva-doce, acidez da maçã, cremosidade do aioli. Misturar tudo no prato vira experiência quase catártica: texturas, temperaturas, sabores se equilibrando. É o tipo de combinação que faz sentido depois que você prova, mas que não é óbvia antes. Há inteligência aqui.

Sem concessões ao paladar infantil

A picanha de cordeiro do Ato IV é o ponto alto da refeição. Está no ponto perfeito — rosa uniforme, suculenta, com gordura perfeitamente cozida, crocante por fora, derretida por dentro. É o tipo de preparo que parece simples mas exige domínio absoluto de temperatura e timing. A polenta verde é legal — cremosa, com sabor herbáceo que não briga com a carne. O relish de tomate verde traz frescor ácido necessário para cortar a gordura do cordeiro. E o brócolis ramoso trabalha bem o amargor. É prato maduro, sem concessões ao paladar infantil que domina tantos restaurantes. Há algo de rústico-sofisticado aqui.

A sobremesa também é adulta. Sorvete de tangerina, laranja e grapefruit frescos, crumble de leite, toque de Cointreau. O doce está na medida — não é sobremesa que tenta compensar falta de técnica com açúcar. Trabalha bem o amargor das partes brancas dos cítricos, aquele gosto levemente amargo que a maioria dos chefs evita mas que aqui funciona como contraponto sofisticado. É sobremesa que confia no paladar do cliente, que não subestima a capacidade de apreciar complexidade.

O que impressiona no Corrutela não é apenas a comida — é a coerência. A sustentabilidade não é marketing. É real. Sistema próprio de compostagem, energia solar, moagem própria do milho da polenta, ingredientes orgânicos de produtores locais. Mas nada disso seria relevante se a comida fosse ruim. E a comida é boa. Muito boa. César Costa entende algo que muitos chefs esquecem: sustentabilidade e sabor não são excludentes. Aqui, o trabalho com vegetais é ainda mais impressionante que com proteínas.

Bom custo-benefício

Quando se considera o preço — R$ 265 por cinco atos de comida tecnicamente competente, conceitualmente coerente, sensorialmente prazerosa — a equação fica quase absurda de tão favorável ao cliente.

Em cidade onde restaurantes cobram R$ 600 por menus que são mais pose que substância, o Corrutela é anomalia bem-vinda. Prova que é possível fazer comida boa, honesta, sustentável, sem cobrar preços que excluem 99% da população. Prova que sustentabilidade não é desculpa para mediocridade. Prova que erudição não precisa ser pedante. E prova que bom custo-benefício não significa comprometer qualidade.

Não é restaurante perfeito. Mas é restaurante necessário. E, considerando o que entrega pelo que cobra, é um dos melhores negócios gastronômicos de São Paulo no momento. É lugar que pensa, mas que não esquece de sentir. E isso, em cenário gastronômico cada vez mais polarizado entre fast food sem alma e fine dining pretensioso, é quase revolucionário.

Todas as visitas do crítico são pagas pelo GLOBO e feitas sem qualquer aviso prévio.

CORRUTELA | Informações essenciais

📍 Endereço: Rua Medeiros de Albuquerque, 256 — Vila Madalena, São Paulo – SP

🍽️ Culinária: Brasileira contemporânea / farm-to-table — forte viés vegetal, uso de ingredientes orgânicos e sazonais, cardápio criativo.

👨‍🍳 Chef: César Costa

⏰ Horário de Funcionamento:

• Segunda: fechado

• Terça: fechado

• Quarta a Sábado: almoço 12h–16h; jantar 19h–23h

• Domingo: almoço das 12h às 16h30

📞 Telefone: +55 (11) 3097-9490

💲 Faixa de Preço: $$ — menu degustação de 5 tempos ou à la carte com pratos autorais; preço médio superior à média de SP.

🥘 Destaques:

• Sustentabilidade de ponta: uso de ingredientes orgânicos, compostagem própria, energia solar, moagem in-house de grãos, aproveitamento integral dos insumos.

• Cozinha criativa e técnica: pratos autorais com vegetais, carnes e frutos do mar, muitas vezes com abordagens inusitadas e refinadas.

• Ambiente contemporâneo: cozinha aberta e estética minimalista, ideal para quem valoriza experiência gastronômica e consciência ambiental.

👀 Atmosfera: casual-sofisticada, despretensiosa, com vibe urbana e moderna — perfeita para jantares a dois ou encontros discretos.

⚖️ Veredicto: Comida com viés intelectual que não perde o foco no sabor. Sustentabilidade real, técnica madura, preço que desafia a lógica do mercado paulistano. Pequenos tropeços não comprometem o menu.

📝 Avaliação: ⭐⭐⭐✰✰

Classificação: Ruim ✰✰✰✰✰ | Satisfatório ⭐✰✰✰✰ | Bom ⭐⭐✰✰✰ | Muito bom  ⭐⭐⭐✰✰ | Excelente ⭐⭐⭐⭐✰ | Excepcional ⭐⭐⭐⭐⭐