Nos últimos 8 anos, Brasil liberou ao menos 10 pessoas por crimes que nunca cometeram

 

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Na maioria dos casos, os erros ocorreram por reconhecimentos indevidos: por meio de fotos e até do tom de voz. Essas pessoas nunca receberam indenização pelo erro. Dois dos inocentes contaram à CBN as marcas que os anos de prisão injusta deixaram na vida deles e da família. Desde 2017, 10 pessoas foram libertadas do sistema carcerário de todo o país, a partir da atuação da ONG Innocence Project, por terem sido presas injustamente: mais de 1 caso por ano. São histórias de homens e mulheres inocentes, moradores de São Paulo, do Rio de Janeiro, de Fortaleza e de Brasília, que ficaram de 11 meses até 15 anos na cadeia por crimes que nunca cometeram. E um fato que chama atenção em quase todas as histórias: a maioria foi condenada pela Justiça apenas por ter sido reconhecida por alguma testemunha, ou por meio de fotos em redes sociais e até pelo tom da voz. Em todos os 10 casos, as penas foram revertidas, mas em nenhum deles a pessoa recebeu indenização do sistema judiciário ou do estado.

Os dados são da ONG Innocence Project, que atua no Brasil desde 2017, e já conseguiu reverter mais de 250 anos de prisão de lá para cá. Entre esses casos, está a história do Francisco Mairlon, que ficou preso por 15 anos por um triplo homicídio no Plano Piloto, em Brasília, mas que confessou o crime após ter sido submetido a episódios de coação. Ele foi liberado do presídio na semana passada, depois de ter sido inocentado pelo STJ.

Caso semelhante viveu Silvio Marques, conhecido como “Pantera”. Ele foi condenado a mais de 16 anos de prisão e ficou quase 6 anos preso por uma tentativa de latrocínio, em 2015, no Rio de Janeiro. A vítima reconheceu o lutador de MMA como autor, mas no dia e no horário do crime, ele estava a mais de 30 quilômetros de distância de onde tudo ocorreu. Apesar de ter conseguido comprovar isso, esse detalhe nunca foi levado em conta. Pantera só conseguiu provar a inocência em 2021, também por decisão do STJ. Depois disso, nunca mais conseguiu retomar a rotina de antes.

“Quando eu saí (da cadeia), eu comecei a dar aula, mas agora só estou treinando. A idade também chegou. Mas eu estou tentando alguma coisa ainda. Antes de ser preso, eu estava em um patamar bem avançado (do MMA) para ir a eventos bem melhores e estar bem de vida. Já em casa, eu ainda estava com o hábito da cadeia, porque eu fiquei muito tempo em um quadradinho e lá, para tomar banho, por exemplo, era de caneco. Aí em casa, com chuveiro, é outra coisa. Mas eu fiquei mais ou menos de três a quatro dias assim: pensando que eu ainda estava lá (no presídio), mas, na verdade, eu estava na rua”, contou.

O caso de Antônio Cláudio, que ficou conhecido como o “Maníaco da Moto”, em Fortaleza, também teve a pena revertida em 2019. Ele passou quase cinco anos preso, acusado de uma série de estupros que não cometeu. Antônio foi reconhecido apenas pela voz e por uma foto retirada do Facebook, após uma denúncia anônima. Em parceria com a Defensoria Pública do Ceará, o Innocence Project Brasil produziu novas provas que demonstraram ser impossível que ele fosse o autor dos crimes. Antônio conta que nunca teve a chance de se defender e que foi torturado até confessar um crime que não cometeu.

“Eu perdi tudo, porque até hoje a minha família está desestruturada psicologicamente, financeiramente. Se eu fechar meus olhos agora, eu consigo voltar no dia que eu ganhei essa liberdade. A primeira coisa que eu fiz quando eu deixei o presídio foi pedir para sair correndo: ‘Ah, deixa eu correr, deixa eu deixa eu andar nessa pista, deixa eu eh viver um pouco”, lembrou.

Mesmo em liberdade, Antônio ainda enfrenta as sequelas deixadas pelos anos em que ficou preso. Ele conta que não se sente totalmente seguro nem dentro de casa e que ainda tem pesadelos e surtos durante a noite. Hoje, aos 41 anos, tenta reconstruir a vida ao lado da família e recuperar os sonhos que foram interrompidos pela prisão.

A advogada Dora Cavalcanti, uma das representantes da ONG Innocence Project no Brasil, e que atuou no caso de Francisco Mairlon, diz que, muitas vezes, a condenação se baseia em um reconhecimento infundado, o que contraria as regras do sistema de Justiça.

“Apenas o Superior Tribunal de Justiça já tem números consolidados indicando mais de 400 condenações revertidas, porque foram construídas nesse elemento de prova que sabemos que é falho e frágil, que é um reconhecimento de pessoa. E o pedido que nós ouvimos sempre é ‘por favor, tenham mais cuidado ao colher a prova’. Às vezes alguém é processado, é condenado e fica ali cumprindo uma pena, verdadeiramente esquecido no sistema penitenciário, sem que tenha havido uma investigação sólida, robusta e séria”, destacou.

A Defensoria Pública atua para corrigir esses erros e garantir o devido processo legal. O defensor público geral, Alexandre Krob, explica que, para uma condenação criminal, é necessário haver provas suficientes de autoria e materialidade do crime. E afirma que as prisões indevidas raramente geram indenizações.

“Todos os demais procedimentos em que uma pessoa acaba sendo presa no curso do processo e ,ao final do processo, ela é considerada inocente ou não há provas suficientes para sua condenação — ou qualquer motivo em que ela não venha a ser responsabilizada criminalmente — é tradição do direito brasileiro que não haja a nenhum tipo de responsabilidade do Estado. Essas pessoas ,normalmente ,não serão indenizadas", explicou.

A CBN entrou em contato com o Conselho Nacional de Justiça e com o Ministério Público Federal, mas nenhum dos órgãos quis se manifestar sobre o assunto. A ONG Innocence Project recebeu, até hoje, mais de 7,4 mil relatos de prisões indevidas. Só em 2024, a ONG respondeu a mais de 2,7 mil casos e acionou a Justiça em 164 processos.