'Não há indícios de ligação entre as ilegalidades na Praia Grande e o assassinato', diz promotor do caso Ruy Ferraz

 

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Assim que ex-delegado-geral de São Paulo, Ruy Ferraz Fontes, foi fuzilado na Praia Grande, em setembro, duas hipóteses para explicar o crime vieram à tona — e dividiram quem atua no caso. A primeira corrente apostou em uma retaliação do Primeiro Comando da Capital (PCC) às quatro décadas de Ruy no combate ao crime organizado — foi ele quem indiciou o principal líder da organização, Marco Willians Herbas Camacho, o Marcola. A segunda arriscou que o assassinato estava ligado à atuação do ex-delegado à frente da Secretaria de Administração da prefeitura de Praia Grande, onde ele andava desconfiado de contratos de licitações do município.

No último dia 21, o Ministério Público definiu como faria a denúncia do crime à Justiça: a morte de Ruy Ferraz estaria relacionada ao passado de combate ao crime organizado. Segundo o documento, a “sintonia geral”, formada pelo alto escalão do PCC, determinou a execução já em 2019. A missão de cumprir a ordem teria sido assumida, em março deste ano, por pelo menos oito pessoas.

À frente do caso, o promotor Renato dos Santos Gama, do Ministério Público de Santos, afirma que, até o momento, nenhuma prova liga o crime à atuação de Ruy na prefeitura de Praia Grande — mesmo após rascunhos descobertos no computador da vítima indicarem que ele investigava licitações locais. Integrante do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) há três anos, Gama ressalta que ainda é preciso encontrar o mandante da execução.

Após a apresentação da denúncia, a morte do doutor Ruy é considerada esclarecida pelo Ministério Público?

A Polícia Civil, e nós acompanhamos a investigação, promoveu uma análise em busca de provas de forma aberta, ou seja, considerando todas as possibilidades. Duas possibilidades surgiram mais fortes. Uma foi a que é adotada por nós e considerou que havia, desde 2019, uma ordem para matar o doutor Ruy. Essa ordem foi expedida, sim, pela cúpula do Primeiro Comando (PCC). A ordem prosseguiu em outros momentos. Por exemplo, quando houve aquela determinação de morte em relação ao meu colega, o promotor Lincoln Gakiya, e também ao senador Sérgio Moro. E por que isso? Porque, efetivamente, o crime organizado, o PCC particularmente, busca determinados alvos como uma forma de demonstrar poder — aqueles que o enfrentam de alguma forma, aqueles que se opõem à cúpula. Se você tem um contexto e temos faccionados executando essa ordem, não tenho como chegar a outra conclusão de que não tenha partido do próprio crime organizado.

Por que?

Porque nós sabemos, isso é um fato incontroverso, que pessoas faccionadas ao Primeiro Comando da Capital não podem executar autoridades sem que haja o aval do próprio comando. Então o que a denúncia deixa bem claro é essa linha objetiva e provada nos autos. Havia ordem desde março de 2025, havia uma organização por parte do crime organizado com locação de imóveis, seção de imóveis por outros envolvidos, veículos, busca de agentes para executar, armas de grosso calibre, uma organização que demonstra que havia todo um planejamento. Então, dentro dessa dinâmica que foi exposta na denúncia, é que nós concluímos: sim, foi uma ordem do crime organizado, do PCC particularmente.

A princípio, cogitou-se também que o crime poderia estar relacionado à atuação do Ruy na Secretaria de Administração de Praia Grande. Ele estava investigando por conta própria alguns contratos que suspeitava serem fraudulentos…

Isso. Havia uma segunda linha de investigação que dizia respeito aos contratos da Prefeitura, às ilicitudes que o doutor Ruy estava apurando. Não somente foram encontrados documentos que corroboram essa ação do doutor Ruy dentro da Prefeitura de Praia Grande, mas também as investigações mostraram que essas ilicitudes são reais. Agora, depois de todas as medidas cautelares adotadas, de todas as quebras de sigilo, de todos os celulares apreendidos de pessoas vinculadas à Prefeitura, não se estabeleceu um mínimo vínculo, ou seja, é inexistente qualquer vínculo entre as pessoas ligadas a essa ilegalidade (e o crime). Não se descarta a hipótese de no futuro eventualmente se descobrir que, de alguma forma, as ilegalidades influenciaram para a execução do doutor Ruy e que as empresas envolvidas também eram braços do PCC ou algo do gênero. Tanto que ainda temos diversas investigações para apurar essas ilegalidades. Agora, o que nós não podemos afirmar, que seria a leviandade de nossa parte, por ausência completa de conteúdo probatório, seria vincular esses contratos e essa ação do doutor Ruy em Praia Grande com o crime.

Então não é possível dizer que o crime está esclarecido?

Não. Veja, nós temos outros executores ainda não identificados. Nós sabemos que há mais pessoas que participaram dessa ação criminosa, e que devem ser identificadas e responsabilizadas. Nós temos mandantes que ainda precisam ser identificados. Porque, se a ordem partiu de uma cúpula, se houve um aval, uma autorização, nós precisamos saber também quem são essas pessoas que deram o aval para a execução. Não é possível, dentro da dinâmica de poder do PCC e também da realidade fática, que o crime não tenha o aval, a autorização, o mandamento do próprio crime organizado. Porque, do contrário, essas pessoas não agiriam dessa forma.

Ou seja, ainda é preciso encontrar o mandante?

Mais do que mandante, nós temos ainda que identificar outras pessoas envolvidas que têm poder de decisão. Então, essas pessoas precisam ser identificadas.

Quais elementos concretos que ligam a morte do Dr. Rui ao passado dele na polícia?

O que liga é o trabalho do Dr. Ruy em relação ao crime organizado, ao PCC particularmente. Esse é o primeiro ponto. Segundo ponto: a ordem ativa da cúpula do PCC para matá-lo. E terceiro ponto, a execução do crime por faccionados do PCC. Essa é uma relação objetiva de causa e efeito.

A denúncia fala que a morte ocorreu com aval da “sintonia geral”. Estavam se referindo à “sintonia final”, da qual a Marcola faz parte?

É. Nós usamos o termo do material apreendido em 2019, em que os próprios criminosos dizem de onde partiu a ordem. Eles chamaram dessa forma. Agora, se eles usaram a nomenclatura correta, se diz respeito à final ou qualquer outra do PCC, isso nós não temos como saber. Nós temos apenas o apontamento que consta do material apreendido.

Por ora, então, é possível descartar que a motivação passa pela atuação dele na prefeitura?

Até o momento, não há qualquer elemento indiciário, mínimo que seja, ligando as pessoas responsáveis pelas ilegalidades em Praia Grande com mandantes da morte do Dr. Ruy. Agora, nada é descartado, uma vez que as investigações prosseguem. E, eventualmente, caso se descubra alguma relação entre as ilegalidades e a morte do Dr. Ruy, elas podem ser um elemento de contribuição. Porque o que está demonstrado é que havia a ordem e que os faccionados executaram essa ordem.

O incômodo do trabalho dele poderia, por exemplo, ter acelerado esse processo?

Em um exercício de elucubração, de imaginação, poderia, eventualmente, ter ocorrido dessa forma. Um ponto muito relevante é que os contratos investigados pelo dr. Ruy são de junho, julho... Acontece que o crime já estava sendo gestado, pelo menos, desde março, por conta dos furtos dos veículos que foram utilizados na ação criminosa. Ora, como havia um início de planejamento bem anterior às ilegalidades que o Dr. Ruy estava apontando? A princípio, esse é mais um elemento a indicar a não relação direta em relação aos contratos.

Mas essa empresa investigada pelo dr. Ruy, do setor de câmeras de vigilância, já vinha vencendo licitações há muitos anos na Prefeitura de Praia Grande…

Sim, ela tinha contratos longuíssimos com a Prefeitura. Há muitos anos, inclusive em gestão anterior, ela já havia sido vencedora. Mas, neste contexto atual, a contrariedade do Dr. Ruy, toda a dinâmica, o estresse que ocorreu em ambiente de Prefeitura, se deu por conta dessa licitação em junho, julho.

Ele não poderia estar incomodado há mais tempo?

Bom, isso não é o que mostram os documentos do Dr. Ruy. A insatisfação dele era bem recente. Inclusive a esposa dele notou mudança de comportamento pouco antes do crime, justamente em junho e julho, quando essa empresa havia vencido novamente a licitação. Houve reuniões lá, e embates foram travados entre as pessoas envolvidas. Então, isso tudo era muito recente.

O inquérito policial mencionou que o dr. Ruy tinha o rascunho de uma denúncia que ele apresentaria ao MP sobre irregularidades nos contratos de licitação. Ele falava da participação de servidores “em conluio” com empresários. Essas pessoas têm alguma relação com o PCC? Porque é de conhecimento público que o PCC está infiltrado em outras prefeituras da Baixada Santista...

Verdade. Nós temos, inclusive, aqui no Gaeco, diversas investigações e ações penais. Justamente isso daí que você está falando, que é a relação entre o crime organizado, a constituição de empresas e, posteriormente, a participação em licitações. A gente sabe plenamente que isso existe e não pode ser ignorado. Mas, nos envolvidos nessa questão dos contratos administrativos das empresas, não foi identificado nenhum agente com algum vínculo com o PCC.

O PCC tem financiado campanhas eleitorais para eleger políticos e, posteriormente, entrar nos contratos de licitação com empresas de fachada. Isso acontecia na Prefeitura de Praia Grande?

Nada a apontar, por enquanto, das empresas investigadas, que seja exatamente esse o esquema.

Por que a Polícia e o MP não aguardaram a conclusão do inquérito que investiga os contratos de Praia Grande para indiciar e denunciar essas pessoas? Elas poderiam fugir?

Porque essas pessoas já foram identificadas, mapeadas, no sentido de serem faccionadas. E há uma motivação objetiva e certeira. Se nós tivéssemos aguardado um final de investigação, que até o momento se mostrou totalmente infrutífero, essas pessoas iriam seguir em liberdade, e com um risco altíssimo de fuga. Tanto que eles falavam sobre fugir para o exterior até serem capturados.