Mulheres e negros são os mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas
A casa construída para a chegada do novo bebê ainda cheirava a tinta de tão nova quando as paredes começaram a tremer naquele temporal de domingo de Carnaval em Juquehy, em São Sebastião (SP). Em menos de quinze minutos, Verônica Souza conseguiu acordar o marido, que não queria sair da cama, e ir embora de lá com três filhos e sete parentes.
—Saímos para a rua com a água no umbigo — conta.
Nunca mais voltaram. Junto com a família dela, mais de 700 pessoas perderam a casa e 64 morreram na maior tragédia climática registrada no estado de São Paulo.
No começo, ela viveu de favor — primeiro numa garagem emprestada, depois dividindo moradia com outros desabrigados. Mais tarde, mudou-se para um dos apartamentos construídos pelo governo estadual para as vítimas da enchente, em outra praia, a de Maresias. Vive agora sem o marido, de quem se separou, e sem a família por perto. Conseguir emprego no novo endereço é mais difícil, conta ela, que vive de faxinas. Trabalhar mais longe também não dá, pois agora não pode contar com a mãe por perto para ajudar a cuidar das crianças.
— Aqui, sou eu e Deus — diz.
Se em São Sebastião nunca havia chovido tanto, a mais de 2 mil quilômetros dali, no Parque do Xingu, o problema é o oposto: a estiagem.
— Antigamente, a cigarra cantava e a chuva vinha. Hoje muitas vezes a cigarra canta e não chove — conta Ayakanukala Waija, da aldeia Topepeweke, no município de Paranatinga, em Mato Grosso.
Por ali, o calor e a seca têm reduzido a disponibilidade de alimentos tradicionais, como peixe, mandioca e pequi. Na aldeia de Ayakanukala, a saída foi mudar a época do plantio da roça para garantir comida de boa qualidade durante os períodos cada vez mais longos de seca.
— Mas tem lugar por aqui que a terra é fraca e não dá para fazer isso — diz.
Por isso, segundo ele, muitos indígenas do parque têm recorrido a alimentos industrializados, como molhos prontos, macarrão e bolachas.
— Isso aumentou os casos de pressão alta entre os mais velhos — relata.
Tanto ele como Verônica integram grupos especialmente atingidos pelo aquecimento global.
— Mulheres, povos indígenas, pessoas negras, comunidades periféricas e pequenos agricultores são os mais vulneráveis aos impactos das mudanças climáticas — diz Caroline Rocha, do instituto Laclima. — A crise climática agrava crises sociais já existentes justamente porque tende a atingir aqueles com menos recursos e acesso a políticas de adaptação.
Moradores de quilombos
No caso das mulheres, a sobrecarga do trabalho doméstico é outra dificuldade. Segundo dados do IBGE, elas dedicam, em média, 21,3 horas semanais a tarefas domésticas e cuidados com pessoas — quase dez horas a mais do que os homens. Foi o caso de Verônica, que perdeu dias de trabalho para passar 14 dias no hospital depois que, após a enchente, a filha de quatro meses foi internada com pneumonia.
— Fica nas mãos das mulheres encontrar as soluções, salvar vidas, providenciar as condições mínimas para a subsistência e a sobrevivência do grupo — diz a diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil, Jurema Werneck.
Junto com a primeira-dama Janja da Silva e a advogada Denise Dora, ela atua como enviada especial da presidência da COP30. A função do trio é percorrer o Brasil para ouvir problemas e soluções de comunidades afetadas pelas reviravoltas no clima, com atenção especial às mulheres. Os relatos das viagens serão apresentados na Carta dos Biomas, documento que o Brasil levará aos negociadores e chefes de Estado na COP em Belém.
Entre as histórias, está a das mulheres de comunidades ribeirinhas de Carneiro da Várzea, no Amazonas, que, com os rios secos, percorrem quilômetros com crianças para buscar água. Há também as moradoras do quilombo da Família Machado, em Porto Alegre, que, nas enchentes do ano passado, organizaram cozinhas comunitárias para atender vizinhas e outras comunidades da região.
Na jornada, Werneck também conheceu histórias como a das moradoras da comunidade da Maré, no Rio de Janeiro, que enfrentam temperaturas muito elevadas. Para amenizar o calor, elas passaram a cultivar plantas nas lajes — uma iniciativa que também passou a fornecer alimentos mais baratos às famílias.
— Existem camadas de vulnerabilidade que se sobrepõem e, sob qualquer ótica, no Brasil e no mundo, as mulheres estarão com os piores índices — diz a embaixadora Vanessa Dolce de Faria, alta representante para temas de gênero do Ministério das Relações Exteriores.
Faria conta que o Brasil espera aprovar na COP um plano de ação que preveja a desagregação de dados sobre o impacto das mudanças climáticas. A meta é segmentar informações não apenas por gênero, como já definido na COP passada, mas por idade e etnia de forma a permitir análises mais completas.
