'Modernização' ou 'desmonte'? Da autodeclaração aos indígenas, entenda, ponto a ponto, o novo licenciamento ambiental
Apontada como um “desmonte” da política de proteção de um lado, defendida como modernização necessária das regras do outro, a nova Lei do Licenciamento Ambiental transformou aspectos centrais no processo de autorização para obras no país. Em agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) havia sancionado o texto aprovado pelo Congresso com vetos a 63 de cerca de 400 dispositivos. Na semana passada, ao derrubar quase todos os vetos, os parlamentares resgataram a proposta original, que amplia em larga escala as possibilidades de licenças por autodeclaração e diminui a exigência de análises de impactos.
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O único consenso entre governo federal e Congresso foi a Licença Ambiental Especial (LAE), criada a partir de uma emenda do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP). Ela prevê rito especial e acelerado, de até um ano, para projetos selecionados como “estratégicos”, o que pode beneficiar, por exemplo, obras polêmicas, como a pavimentação da BR-319 (Manaus-Porto Velho) e a exploração de petróleo na Margem Equatorial, cuja pesquisa já foi autorizada. O tema foi tratado em uma Medida Provisória enviada por Lula ao Parlamento, aprovada na última quarta-feira — ao lado, entenda o que foi incluído neste texto.
A MP foi o capítulo mais recente de um percurso iniciado em 2004, quando deputados elaboraram a primeira proposta de reforma. Só em 2021, porém, a Câmara aprovou a matéria, que foi votada no Senado em maio. Devido a alterações no texto, o projeto precisou retornar à Câmara para nova aprovação, em julho.
O Ministério do Meio Ambiente sempre encampou a bandeira de que as mudanças seriam uma “demolição” do licenciamento ambiental. Entidades fizeram coro pelo veto integral de Lula, mas o presidente focou nos trechos tidos como mais sensíveis, incluindo vários apontados como inconstitucionais. É esse, inclusive, o principal mote para a mais do que provável judicialização de diferentes pontos na nova lei.
Licença simplificada
Licença simplificada
Editoria de Arte
Como era antes - Estados e municípios realizavam licenças simplificadas, muitas vezes por autodeclaração, para projetos de baixo risco e pequeno potencial poluidor. O STF já havia barrado leis estaduais que tentavam simplificar licenças de empreendimentos de médio porte.
O que o governo tentou - Lula viu inconstitucionalidades e vetou ampliar a Licença Ambiental por Adesão e Compromisso (LAC) a atividades de médio potencial poluidor, para evitar que projetos de risco relevante obtivessem aval sem análise técnica adequada, limitando a autodeclaração.
Como ficou agora - Permite a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), simplificada e autodeclaratória, para obras de médio impacto, respeitando “medidas de controle ambiental necessárias”. O Ibama estima que a mudança pode atingir até 90% dos empreendimentos do país.
Autonomia dos entes
Autonomia dos entes
Editoria de Arte
Como era antes - Estados e municípios podiam definir regras próprias, desde que respeitando normas federais gerais — definidas pelo Conama ou via decretos —, com padrões e critérios específicos sobre porte da obra, potencial poluidor e atividades passíveis de licença ambiental.
O que o governo tentou - O governo vetou a definição livre de estados e municípios sobre critérios para licenças. Para o Planalto, isso desconsideraria a competência da União para regras gerais e fomentaria “uma competição regulatória e antiambiental entre os entes subnacionais”.
Como ficou agora - Estados e municípios estabelecem os próprios critérios sobre porte da obra e potencial poluidor, além de definir qual tipo de projeto precisa ou não pedir o licenciamento, respeitando uma lei que define normas de cooperação com a União para ações ambientais.
Mata Atlântica
Mata Atlântica
Editoria de Arte
Como era antes - Pela Lei da Mata Atlântica, o corte de vegetação primária e secundária em regeneração avançada precisava de aval federal, em geral do Ibama. Além disso, o órgão estadual ambiental têm de autorizar o municipal para vegetação em regeneração média na área urbana.
O que o governo tentou - Lula rechaçou a tese de que a necessidade de aval em diferentes níveis configuraria uma dupla análise. Ao vetar a mudança, apontou que a flexibilização da proteção da Mata Atlântica “contraria interesse público e incorre em vício de inconstitucionalidade”.
Como ficou agora - Foi revogada a necessidade de aval de órgão federal para corte de vegetação primária e secundária em estágio avançado de regeneração, e do órgão estadual no caso de vegetação urbana no estágio médio de regeneração. A intenção foi evitar uma “dupla análise”.
Indígenas e quilombolas
Indígenas e quilombolas
Editoria de Arte
Como era antes - Precisavam ser legalmente consultados sobre projetos de impacto construídos em seus territórios, independentemente de serem terras oficialmente homologadas — desde que já fossem consideradas declaradas, etapa anterior da demarcação.
O que o governo tentou - A mensagem de veto frisou que limitar a consulta a terras homologadas contrariaria “o interesse público” e seria um “vício de inconstitucionalidade”, pois essas populações precisam ser ouvidas independentemente da conclusão do processo de formalização fundiária.
Como ficou agora - Com a derrubada do veto presidencial pelo Congresso, só haverá direito à consulta por populações tradicionais no caso de empreendimentos situados em Terras Indígenas já devidamente homologadas ou em Comunidades Quilombolas tituladas.
Cadastro Ambiental Rural
Cadastro Ambiental Rural
Editoria de Arte
Como era antes - O produtor rural precisava ter seu Cadastro Ambiental Rural (CAR) validado e homologado para requisitar a dispensa de licenciamento ambiental em sua atividade — desde que a natureza dela também permitisse essa desobrigação.
O que o governo tentou - O presidente Lula argumentou, ao vetar o item, que alterar esse trecho da legislação impediria o controle efetivo dos impactos ambientais. Assim, só seriam dispensados do licenciamento os proprietários rurais que tivessem o CAR devidamente analisado.
Como ficou agora - Mais uma vez sob o pretexto de desburocratizar os processos de autorização, passou a ser admitida a dispensa de licenciamento ambiental mesmo para os produtores rurais que tenham o “registro no CAR pendente de homologação” .
Impactos indiretos
Impactos indiretos
Editoria de Arte
Como era antes - Os impactos indiretos — que incluem, por exemplo, repercussões em fauna e flora ou o aumento do desmatamento nos anos seguintes — eram uma parte essencial da análise ambiental, sendo necessário apresentar condicionantes e medidas de mitigação.
O que o governo tentou - Lula vetou as mudanças sob a justificativa de que “a presença de um empreendimento pode aumentar a demanda por serviços públicos ou induzir a impactos que, embora gerados por terceiros, são decorrentes” da existência daquele projeto.
Como ficou agora - A nova legislação eliminou a exigência de mitigar ou compensar “impactos ambientais causados por terceiros”. Também não será mais preciso observar efeitos sobre serviços públicos agravados pela implantação do empreendimento.
Unidades de conservação
Unidades de Conservação
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Como era antes - Qualquer licenciamento sobre obras ou intervenções dentro de uma Unidade de Conservação dependia de manifestação de seus órgãos gestores, com “caráter vinculante”. Ou seja, eles tinham a palavra definitiva sobre o tema, com poder de veto.
O que o governo tentou - O presidente também considerou inconstitucional alterar a regra vigente. Ao vetar a retirada do caráter vinculante da manifestação dos órgãos gestores, reforçou a importância da avaliação técnica especializada na proteção de áreas ambientalmente sensíveis.
Como ficou agora - Foi extinguido o caráter vinculante das manifestações de órgãos gestores de Unidades de Conservação no processo de licenciamento de obras no interior desses espaços. A participação, agora, terá viés somente consultivo, sem poder de veto.
Licença Ambiental Especial
Licença Ambiental Especial
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Como era antes - No formato anterior da legislação, não existia, de maneira regulamentada, qualquer previsão de um processo acelerado e especial para licenciamento ambiental de obras consideradas estratégicas para o governo em exercício.
O que o governo tentou - O governo admitiu a criação do dispositivo, mas vetou que o licenciamento acontecesse em fase única. Para isso, apresentou uma MP a fim de regulamentar a licença especial, formatada em três etapas e com duração de análise de no máximo um ano.
Como ficou agora - A primeira versão do texto propunha o processo “monofásico”, ou seja, em só uma etapa de apresentação de documentos e estudos. Ao analisar a MP de Lula, porém, o Congresso chancelou o modelo trifásico para “priorizar” obras estratégicas, com duração de um ano.
Responsabilidade de crédito
Responsabilidade de crédito
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Como era antes - As instituições financeiras que concedem crédito, como bancos, precisavam exigir o licenciamento ambiental de empreendimentos financiados. Essas entidades podiam, inclusive, responder solidariamente por eventuais danos ambientais causados.
O que o governo tentou - Com o veto, o governo buscou manter o financiamento condicionado aos fatores ambientais. Lula alegou que a alteração poderia “gerar insegurança e graves controvérsias jurídicas em casos de danos ambientais submetidos à apreciação judicial”.
Como ficou agora - Foi retirado o dever fiscalizatório da regularidade ambiental do contratado. A lei afirma, assim, que os bancos não poderão ser responsabilizados por eventuais danos ambientais ocorridos em razão da execução da atividade ou do empreendimento.
O que foi mudado a partir da medida provisória
O governo federal enviou uma Medida Provisória ao Congresso para regulamentar a criação da Licença Ambiental Especial (LAE) em um modelo trifásico, ao contrário do monofásico sugerido anteriormente. Ao apreciar a MP, porém, os parlamentares não apenas chancelaram o novo formato de autorização para empreendimentos considerados estratégicos, como voltaram a avaliar alguns pontos do licenciamento ambiental como um todo. Veja, abaixo, o que ficou definido nas votações na Câmara e no Senado, onde o texto foi aprovado na última quarta-feira.
LAE - A MP regulamentou o funcionamento da Licença Ambiental Especial, através de três etapas e com duração de análise de no máximo um ano, inclusive para projetos de alto impacto poluidor. As obras estratégicas serão definidas pelo Conselho do Governo e publicadas em Diário Oficial. O Congresso incluiu no texto “serviços e obras direcionados à manutenção e melhoramento” em “rodovias previamente pavimentadas”, o que, como O GLOBO mostrou ontem, permite a intervenção na BR-319, rodovia que corta o coração da Amazônia.
LAC - A MP trouxe mais regras para a Licença por Adesão e Compromisso (LAC), vedando o uso em locais específicos, como dentro de Unidades de Conservação, barragens de mineração e áreas de risco, mas permitiu a “autodeclaração” para atividades como extração de areia, brita, cascalho e diamante.
Ampliação de dispensas - Dragagens de manutenção em hidrovias e vias naturalmente navegáveis, além de antenas de telecomunicação que não causem “significativo impacto”, passaram a ter direito à dispensa de licenciamento ambiental.
Transparência - Tanto os pedidos de licença quanto as licenças emitidas precisarão ser publicadas por meio eletrônico, em sites oficiais da autoridade licenciadora, substituindo a exigência anterior de publicação em papel (Diário Oficial e jornais de grande circulação).
