Militares, diplomatas e uma ‘startup caótica’: sem palestinos, base dos EUA define futuro de Gaza a portas fechadas

 

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Em um parque industrial obsoleto no sul de Israel, um enorme armazém de carga reaproveitado está em plena atividade, reunindo centenas de militares americanos e israelenses, oficiais de inteligência árabes, trabalhadores humanitários internacionais e diplomatas e integrantes das Forças Armadas de toda a Europa e até de Cingapura. A missão oficial desse grupo é ajudar a monitorar o frágil cessar-fogo entre Israel e Hamas na Faixa de Gaza. Mas eles também foram encarregados de contribuir para a elaboração de planos ambiciosos para o futuro do enclave no pós-guerra, alinhados à proposta de paz de 20 pontos do presidente Donald Trump — desarmando o Hamas e reconstruindo Gaza sob uma nova administração palestina independente.

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Na segunda, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução endossando o plano de paz de Trump, que também prevê o envio de uma força internacional de estabilização para entrar em Gaza, desmilitarizar o território e administrá-lo. E alguns militares dos EUA na instalação estão trabalhando em planos operacionais para essa força. No entanto, um mês após o início das operações do centro, ainda não está claro se houve avanços significativos. Autoridades compararam o Centro de Coordenação Civil-Militar (CMCC) a uma startup caótica.

O problema mais marcante está no fato de que não há representação palestina formal no edifício, o que atraiu críticas de diplomatas e trabalhadores humanitários que afirmam ser improvável que uma visão externa para Gaza funcione sem que os palestinos tenham participação relevante. Alguns envolvidos no esforço dizem que as cenas de soldados americanos debatendo ideias sobre como reconstruir a devastada Faixa de Gaza evocam memórias desconfortáveis de outras tentativas lideradas pelos EUA de reconstrução no Iraque e no Afeganistão.

No prédio em Kiryat Gat, cerca de 21 quilômetros ao nordeste de Gaza, telões exibem imagens aéreas do enclave. Mesas-redondas regulares conduzidas por oficiais americanos de alta patente tratam de temas como inteligência, ajuda humanitária e governança civil, segundo o capitão Tim Hawkins, porta-voz do Comando Central das Forças Armadas dos EUA. O trabalho do centro está sendo supervisionado por uma equipe liderada por Aryeh Lightstone, assessor do governo Trump atualmente baseado em Tel Aviv, que atua na formulação da estratégia de longo prazo para o futuro de Gaza, segundo vários diplomatas e autoridades informadas sobre o assunto. Lightstone não quis comentar.

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Países como Canadá, Emirados Árabes Unidos e Alemanha enviaram representantes, assim como agências humanitárias e organizações sem fins lucrativos, de acordo com duas autoridades e um organograma interno recentemente compartilhado por uma delas. Alguns oficiais com ampla experiência no Oriente Médio trabalham ao lado de outros sem nenhuma experiência. Em certo momento, foi realizada uma introdução para recém-chegados intitulada “O que é o Hamas?”, segundo três autoridades.

Há inúmeras sessões com quadro branco, às vezes com nomes leves para temas pesados, de acordo com duas autoridades. Um grupo de trabalho sobre questões de governança civil dividiu a semana em dias temáticos, incluindo as “quartas-feiras do bem-estar”, para saúde e educação, e as “quintas-feiras da sede”, para infraestrutura de água. As informações são baseadas em entrevistas com mais de 20 diplomatas, outras autoridades e trabalhadores humanitários que passaram um período na instalação, além de documentos internos de planejamento obtidos pelo New York Times. Israel não quis comentar.

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Acordo frágil

Israel e Hamas concordaram com um cessar-fogo apoiado pelos EUA no mês passado, encerrando mais de dois anos de uma guerra devastadora que destruiu Gaza — lar de cerca de 2 milhões de pessoas — e matou dezenas de milhares de palestinos. O conflito começou depois que o Hamas atacou Israel em 7 de outubro de 2023, matando cerca de 1,2 mil pessoas e sequestrando aproximadamente 250 reféns.

Como parte da trégua, o Hamas libertou 20 reféns de Israel em troca de quase 2 mil prisioneiros palestinos, e concordou em entregar os corpos de mais de duas dezenas de outros em troca dos restos mortais de palestinos. E Israel recuou suas forças, mantendo controle de um pouco mais da metade de Gaza. Mas o acordo não encerrou formalmente a guerra: agora, os EUA pressionam ambos os lados para avançar à segunda fase do plano de paz de Trump, que visa desarmar o Hamas, enviar uma força internacional de estabilização para Gaza e reconstruir ao menos as áreas do território que hoje estão sob controle israelense.

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Pelo menos parte dos preparativos para essa fase está acontecendo no centro de coordenação, criado rapidamente por 200 militares do Comando Central dos EUA e inaugurado em 17 de outubro. O edifício antes servia como base para a Fundação Humanitária de Gaza, um grupo de distribuição de ajuda apoiado por Israel que foi amplamente criticado e suspendeu suas operações em outubro, segundo duas pessoas informadas sobre o assunto.

O tenente-general Patrick Frank, comandante do Exército dos EUA no componente do Comando Central, e Steven Fagin, embaixador dos EUA no Iêmen, dividem a liderança do centro. O major-general Yaakov Dolf é o principal oficial de ligação das Forças Armadas de Israel.

Imagem de prédios destruídos na Faixa de Gaza, em área próxima à fronteira com Israel

Jack GUEZ / AFP

Outro tema monitorado pelo CMCC é a ajuda humanitária que entra em Gaza, regulada por Israel. Hawkins afirmou que cerca de 800 caminhões de ajuda humanitária agora entram diariamente em Gaza. Autoridades americanas têm pressionado para que todo o suprimento enviado ao enclave fique sob a alçada do centro, mas os resultados até agora têm sido mistos, segundo cinco participantes do CMCC.

Futuro palestino

A Autoridade Nacional Palestina (ANP), apoiada internacionalmente, elaborou seus próprios planos para assistência humanitária e reconstrução pós-guerra em Gaza. Mas autoridades palestinas não foram incluídas no centro de coordenação, segundo vários oficiais informados sobre as operações do hub. Isso reflete a insistência de Israel de impedir que a ANP governe Gaza após a guerra — posição alinhada à determinação do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de bloquear a criação de um Estado palestino independente na Cisjordânia e em Gaza.

No armazém em Kiryat Gat, tropas americanas ocupam o último andar. O térreo pertence a Israel. Entre eles está um piso conjunto, também compartilhado por organizações internacionais e representantes de outros governos. O centro de coordenação rapidamente se tornou cenário de visitas de alto perfil de autoridades do governo Trump, incluindo o vice-presidente JD Vance e o secretário de Estado Marco Rubio.

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Durante uma visita ao centro na segunda-feira, jornalistas receberam um tour supervisionado de perto pelo andar intermediário. Soldados americanos puderam ser vistos apresentando a oficiais israelenses de uniforme verde um projeto de força policial palestina para Gaza. Um mapa do enclave exposto no amplo centro do salão mostrava uma “zona vermelha”, ainda sob controle do Hamas, e uma “zona verde”, controlada por Israel. A linha amarela — para a qual as tropas israelenses recuaram como parte do cessar-fogo — separa as zonas.

Um diplomata ocidental que visitou o centro comparou seu ambiente aberto a um campus da Google de baixo orçamento. Todas as manhãs, um oficial militar de alta patente normalmente conduz uma reunião geral conjunta, reforçando a atmosfera de startup, disseram várias autoridades.

Os esforços do centro agora incluem algum planejamento para “comunidades seguras alternativas”, segundo mais de oito diplomatas e autoridades — novos conjuntos residenciais que o governo Trump considera construir para palestinos em partes de Gaza que permanecem sob controle israelense. Autoridades israelenses e americanas esperam que esses novos conjuntos atraiam palestinos em busca de abrigo e segurança, convencendo-os a sair da zona controlada pelo Hamas e enfraquecendo o grupo, disseram as autoridades.

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Não estava claro se ou quando esses conjuntos seriam construídos. Mas vários diplomatas informados sobre a iniciativa criticaram a proposta, questionando se os palestinos aceitariam viver ali, se Estados Unidos e Israel imporiam condições para determinar quem poderia morar nesses locais e se isso poderia criar condições para uma partição permanente do enclave.