Maioria dos agentes da ditadura morre antes do julgamento ou da denúncia por violações de direitos humanos, aponta estudo

 

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Uma pesquisa da Clínica de Direitos Humanos da Universidade Federal do Estado de São Paulo (Unifesp) mostra que a maioria dos agentes estatais acusados de violações de direitos humanos durante a ditadura militar não foi julgada ou mesmo acusada formalmente antes de morrer. O estudo aponta que 69% dos envolvidos em casos desse tipo faleceram sem qualquer responsabilização na esfera penal. As acusações incluem crimes como homicídio, falsidade ideológica e sequestro, muitas vezes associados à ocultação de cadáver, e pelo menos 18 casos de desaparecimento forçado.

O levantamento identificou 139 agentes envolvidos em violações que foram mencionados em 53 ações penais iniciadas pelo Ministério Público entre 2012 e 2022. Desse total, 96 faleceram antes da apresentação da denúncia ou durante o processo. Segundo o estudo, 72 foram efetivamente processados pelo MP Federal e se tornaram réus, mas nenhum foi condenado em definitivo.

As autoras do estudo destacaram dois entraves principais para a responsabilização: a rejeição das denúncias, majoritariamente com base na Lei da Anistia e na prescrição penal (perda do Estado do direito de punir em razão do decurso do tempo), e a própria demora na tramitação dos processos, classificados como "obstáculos institucionais dos tribunais".

O coronel reformado Carlos Brilhante Ustra, que morreu em 2015, e Alcides Singillo, morto em 2019, foram os réus que mais tiveram a punibilidade extinta em processos. O coronel que chefiou o Doi-Codi do 2º Exército durante os anos 1970, teve extintos sete processos, e o delegado da polícia civil que atuou no Departamento de Ordem Política e Social (Deops), outros três. Citados como envolvidos em quatro denúncias, cada, Alcides Cintra Bueno, Ênio Pimentel Da Silveira, Isaac Abramovitc e Sérgio Fernando Paranhos Fleury morreram sem pagarem por quaisquer crimes ligados a elas.

Das 53 denúncias, 38 foram rejeitadas, mostra o estudo. Outras 14 foram admitidas, mas onze delas não estão tramitando no momento, por decisões posteriores de suspensão ou arquivamento. Apenas duas denúncias admitidas resultaram em condenação: contra Cláudio Antônio Guerra, que atuou como delegado do Dops-ES, e contra Carlos Alberto Augusto, delegado da Polícia Civil de São Paulo atuante no Dops-SP. As sentenças foram revertidas em segundo grau, por prescrição.

O estudo cita, ainda, o caso "expecional" da denúncia contra Antonio Waneir Pinheiro Lima, sargento envolvido no centro de torturas "Casa da Morte", em Petrópoles, na Região Serrana do Rio. A acusação foi rejeitada inicialmente, e ele chegou a ser absolvido com base da Lei da Anistia, mas decisões em recursos permitiram o andamento do caso sobre o sequestro, a tortura e o estupro da vítima Inês Etienne Romeu. O processo aguarda sentença na 1ª Vara Federal de Petrópolis desde agosto.

Em 2010, ao julgar a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 153, o Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na Lei da Anistia que viabilizasse a punição a representantes do Estado acusados de praticar atos de tortura durante o regime militar.

O estudo da Unifesp destaca que há, no mínimo, dez recursos pendentes na Corte sobre o tema — um deles, de relatoria do ministro Flávio Dino, discute se é possível anistiar crimes permanentes, como ocultação de cadáver; outros três, sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes, se cabe anistia em casos de crimes classificados como graves violações de direitos humanos.

O estudo resulta de uma investigação coletiva, entre setembro e novembro deste ano, na Clínica de Assessoria Jurídica em Direitos Humanos da Unifesp, que contou com a participação das alunas Isabelle Macedo Gaiatto, Isadora Coelho Lemos e Carvalho e Sophia Bianchim de Camargo. O projeto fez parceria com a Conectas Direitos Humanos, o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória (GPDG) do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP) e com a Coalizão Brasil por Memória, Verdade, Justiça, Reparação e Democracia (Coalizão Memória) para atuação conjunta como amici curiae nos recursos no STF.

A professora de Direito na Unifesp e Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da Unifesp, Carla Osmo, ressalta que o Brasil já foi condenado três vezes por violações de direitos humanos na ditadura: em 2010, pelos fatos não apurados durante a Guerrilha do Araguaia, nos anos 1960-70; em 2018, pelo assassinato do jornalista Vladimir Herzog, em 1975; e, este ano, pela tortura e pela morte de Eduardo Leite, o Bacuri, da Ação Libertadora Nacional (ALN), em 1970.

— O Brasil está com atraso muito grande no cumprimento da obrigação internacional de investigar criminalmente, propor os processos criminais contra os agentes de Estado que praticaram violações graves. No caso do Bacuri, a investigação chegou a ser reaberta, mas foi encerrada sob justificativa de que os agentes identificados ou haviam falecido ou estavam com idade avançada ou não puderam ser localizados. Cada vez mais a gente observa que, se o Brasil não cumprir imediatamente suas obrigações, isso se tornará impossível. É a última chance de o STF tomar uma decisão que vá levar o Brasil a cumprir suas obrigações internacionais — destaca Carla.

Para as autoras do estudo, a presença das ações no STF "delineiam um horizonte positivo para a mudança do entendimento fixado na ADPF 153, de modo a viabilizar (ainda que tardiamente) a responsabilização penal de parte dos agentes da ditadura". Elas ponderam que essa possibilidade não ameniza um dos principais fatores favoráveis à impunidade, a passagem do tempo, que acarreta muitas vezes a morte de réus, vítimas sobreviventes e parentes antes da definição dos processos.

STF pode mudar entendimento

À época do julgamento da ADPF 153, o Brasil ainda não havia sido condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Desta vez, ao analisar os recursos pendentes, destaca Carla Osmo, o STF deve se posicionar a respeito.

Em fevereiro, após pedido do ministro Flávio Dino, o STF formou maioria para decidir que a Corte vai analisar se a aplicação da Lei da Anistia ao crime de ocultação de cadáver no período da ditadura militar é constitucional. Em dezembro, o magistrado propôs a fixação de uma tese para que o crime não seja alcançado pela legislação, sancionada em 1979.

Ao analisar um caso concreto, sobre o desaparecimento de André Grabois, João Gualberto e Antônio Lima, militantes na Guerrilha do Araguaia, Dino apresentou aos colegas da Corte a tese de que o sumiço dos corpos, sem a possibilidade de sepultamento pelas famílias, é um crime permanente. Não poderia, portanto, ser perdoado.

Ao argumentar, Dino citou o filme "Ainda Estou Aqui", que conta o drama de uma família após o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, assassinado pela ditadura em 1971, cujo corpo nunca foi encontrado.

Também em fevereiro, o STF formou maioria para reconhecer que há repercussão geral em uma discussão sobre se a Lei de Anistia deve valer para crimes permanentes e graves violações de direitos humanos. A análise ocorre a partir de três casos concretos, sendo um deles da morte do ex-deputado Rubens Paiva.

O segundo caso é semelhante: Mário Alves de Souza Vieira, que era dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), desapareceu em 1970 e seu corpo também não foi encontrado. Já Helder José Gomes Goulart foi morto em 1973, e seus restos mortais foram encontrados em uma vala clandestina no Cemitério de Perus, em São Paulo, em 1992.

Para além desses casos, segundo o estudo da Unifesp, há 16 processos suspensos nos tribunais de origem aguardando o julgamento dos temas de repercussão geral do STF e também da ADPF 320, protocolada há mais de uma década e que versa sobre a interpretação que o Judiciário e o Poder Público dão à Lei de Anistia.