Jogo bonito da seleção brasileira resgata boas memórias

 

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O maior luxo que já tive na vida foi um campo de futebol. Ficava no quintal da última casa em que moramos em Bicas, no alto da Avenida Brasília. Ocupava a única parte plana de um quintal que subia o morro até o hospital novo da cidade (eu nasci no velho) e tinha pés de limão, mexerica, laranja bahia e fruta do conde. Montamos as traves com bambu e, quando alguém da turma descobriu que o Esporte Clube Biquense estava trocando as redes da quadra, fomos lá buscar as velhas. Amarramos do jeito que deu e passamos a imaginar que nossos chutes as estufavam como as do Maracanã.

Um dos lados não tinha linha. A marcação era imaginária, a partir de uma goiabeira que jogava de lateral-esquerdo plantado e cujo único galho grosso servia de arquibancada para quem ficava no time de fora. Pela outra lateral corria uma cerca baixa. A bola dente de leite passava sobre ela várias vezes e caía nos fundos da casa do vizinho, guardados por um pastor alemão pouco amigável. Nossa estratégia para recuperá-la foi inventada pelo Erler, filho do meu padrinho Nevito: ele enfiava um pedaço de pau entre as estacas de bambu e provocava o cachorro, enquanto eu pulava o muro e ia pé ante pé, sem respirar, me arriscando no papel de gandula. Sobrevivi.

Cada time podia ter dois ou três jogadores na linha. Não havia número suficiente para montar um esquema tático, e ninguém tinha noção de posição. Queríamos todos ser camisas 10. Eram os anos 70, que começaram sob a marca de uma seleção com vários 10 em torno de Pelé, o maior de todos. É verdade que nas duas Copas seguintes, as primeiras das quais os moleques do campinho guardamos alguma lembrança, o Brasil esteve muito longe do jogo bonito que encantou o mundo no México e virou sinônimo de futebol brasileiro para os estrangeiros — como vem acontecendo de novo neste século.

Esse varandão da saudade se abriu quando vi o Brasil jogar bonito no amistoso contra Senegal. O estádio do Arsenal é infinitamente mais luxuoso do que o campinho da minha infância, mas o quarteto de ataque parecia estar brincando no quintal. As combinações de Vini Jr. e Rodrygo pelo lado esquerdo me fizeram lembrar do jogo do Real Madrid que vi à beira do gramado, no Mundial de Clubes do Marrocos, quando tive vontade de cruzar a linha para dar um abraço de solidariedade nos zagueiros do Al Ahly que tentavam marcá-los. Os gols premiaram as boas atuações do jovem Estêvão e do veterano Casemiro.

Eu sei, eu sei. Senegal, um adversário melhor do que os asiáticos da data Fifa anterior (vinha de uma série invicta de 26 jogos, incluindo um 4 a 2 no bagunçado Brasil de Ramon Menezes), pressionou ainda no primeiro tempo e equilibrou o segundo, quase marcando numa falha de Ederson. A seleção de Ancelotti não é nem será a de 70, um amistoso não é parâmetro para um jogo de Copa, não dá para saber se o que se viu em Londres é suficiente para enfrentar um time europeu de ponta.

A vida adulta continuará trazendo essas e outras ponderações. Mas foi reconfortante voltar a ver o jogo bonito, e mais ainda perceber que é resultado de uma ideia, um trabalho, uma estrutura — tudo o que faltou nos últimos anos, e que ontem serviu de base para o Brasil resgatar um encanto de criança pelo futebol.