Futuro roubado: Menores ucranianos são deixados em segundo plano pela diplomacia na guerra
“Os russos foram à nossa escola, pegaram crianças de 5 a 17 anos e nos levaram a um lugar desconhecido, que mais tarde descobrimos ser um campo para órfãos”, afirmou Artem, um jovem morador de Kharkiv, de 16 anos, descrevendo o local onde foi mantido por em condições precárias e sob ameaça constante.
— Toda vez que falava em ucraniano, me mandavam falar em russo — disse em depoimento à ONG Bring Kids Back, que trabalha pelo retorno dos menores ucranianos ao país. — Todas as manhãs, nos davam a letra do hino russo para cantar, mas eu rasgava o papel. Eles ainda ameaçavam me mandar para uma família adotiva na Rússia.
Artem, liberado seis meses depois, foi um dos cerca de 20 mil menores ucranianos retirados dos braços de suas famílias pelas forças russas e enviados para escolas, acampamentos e outras instituições desde o início da invasão ordenada por Vladimir Putin, em fevereiro de 2022. Desses, menos de 2 mil retornaram para casa.
— Quando as crianças são repatriadas para a Ucrânia, elas ficam em estado de choque. Elas não conseguem entender as circunstâncias ao seu redor. Disseram a elas que a Ucrânia não se importa com elas. Que o país está destruído, que não existe mais. E, de repente, elas voltam para Kiev e veem que é uma cidade perfeitamente funcional — disse ao GLOBO Hratche Koundarjian, chefe de comunicações da ONG War Child, que presta apoio a crianças e adolescentes em áreas de conflito.
Repetindo um enredo de guerras passadas, os menores são as maiores vítimas das armas, e no caso ucraniano o impacto consegue ir além da violência que deixou quase 600 crianças e adolescentes mortos e dezenas de milhares feridos. A própria Rússia alega que “abrigou” até 700 mil menores, mas que o fez para garantir a segurança deles. Em 2023, o Tribunal Penal Internacional emitiu uma ordem de prisão contra Putin e Maria Lvova-Belova, comissária para os Direitos da Criança da Federação Russa. A medida apenas fez com que o líder russo reduzisse suas viagens ao exterior, escolhendo países onde não seria preso, como a China e os Estados Unidos.
O governo ucraniano trata o tema como existencial. O presidente Volodymyr Zelensky, em paralelo aos seus apelos por armas e verbas, tenta extrair de líderes aliados gestos de apoio e promessas de pressão sobre Moscou. Em reunião recente com o Papa Leão XIV, no Vaticano, agradeceu o apoio da Santa Sé na questão. Dias antes, uma resolução patrocinada por Kiev e outros 27 países foi aprovada pela Assembleia Geral da ONU, na qual exigia o retorno imediato e incondicional das crianças. O texto passou com o apoio de 91 países, com 12 votando contra e 57 abstenções, incluindo a do Brasil.
— O que estamos testemunhando, portanto, não é apenas uma tragédia envolvendo algumas crianças, mas uma violação do direito internacional — disse a presidente da Assembleia Geral, Annalena Baerbock, citando o Artigo 49 da Quarta Convenção de Genebra, que veta a transferência forçada de civis de áreas ocupadas em tempos de guerra.
Na versão inicial de um plano de paz apresentado pela Casa Branca, no mês passado, a “reunificação familiar” seria relegada a uma comissão que discutirá o tema posteriormente. Termos similares aos de uma proposta alternativa apresentada pelos europeus.
— Precisamos de um mecanismo verificável, que não dependa apenas da Rússia, mas que conte com outros governos e organismos internacionais autorizados a entrar na Ucrânia ocupada, ou na própria Rússia, para contatar diretamente essas crianças de forma contínua para garantir seu bem-estar e segurança. No momento, não temos isso — diz Koundarjian.
A Rússia já sinalizou que não aceitará ultimatos.
— Embora a Europa expresse a vontade de que essas crianças voltem para casa, para seus pais, ela não está disposta a assumir riscos de uma escalada do conflito com a Rússia. Mas para a Ucrânia não há escalada, ela já está em uma guerra pela própria existência — disse ao GLOBO Kai Lehmann, professor de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP).
Kira, com 11 anos quando a invasão começou, por pouco não se tornou mais uma criança levada a um outro país contra sua vontade. Durante um bombardeio em Mariupol, viu o pai morrer na sua frente, e acabou em um hospital militar russo, sozinha.
— Eles (russos) me disseram que se ninguém viesse me buscar, me mandariam para um lugar remoto, um orfanato, na Rússia — revelou a jovem, de 14 anos, à Bring Kids Back.
No depoimento, se disse tão abalada que esqueceu, por mais de uma semana, que tinha um telefone celular. Quando conseguiu recarregá-lo, ligou para seu avô — que cuidava dela após a morte de sua mãe, quando ainda era bebê — e ele a buscou em um hospital de Donetsk, de fato sob poder russo desde 2014. Em um desabafo, afirmou que os russos tiraram dela “sua infância, sua cidade e seu pai”.
— O risco de impunidade é elevado, e quanto mais tempo levar para recuperar essas crianças que foram levadas ilegalmente para a Rússia, mais difícil será devolvê-las para seus pais e para a Ucrânia — afirma Lehmann. — Elas estão indo para a escola, sendo “russificadas” a cada dia, e isso faz com que uma repatriação seja mais complicada.
Em setembro, um relatório do Laboratório de Pesquisa Humanitária da Universidade Yale apontou para 210 instalações na Rússia e nos territórios ocupados para onde as crianças ucranianas foram levadas. Mais da metade dos menores — 62% — passou por atividades de “reeducação”, e 18% foram incluídos em programas militares. Em depoimento ao Congresso dos EUA, uma representante de Kiev disse que há pelo menos dois casos de menores enviados a um campo de doutrinação na Coreia do Norte, aliada de Moscou.
O ataque à juventude ucraniana não vem apenas através das deportações. De acordo com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), 340 estabelecimentos educacionais foram destruídos em 2025, e mais de 2,8 mil desde fevereiro de 2022. Ao todo, 4,6 milhões de menores em idade escolar enfrentam barreiras educacionais, desde a interrupção de aulas por ataques aéreos até a mudança de currículos em áreas ocupadas: como parte da estratégia de Moscou, regiões anexadas assam a seguir seus sistemas legal, político e educacional, o que inclui a adoção obrigatória do idioma russo. Um processo traumático e que visa borrar a identidade nacional ucraniana.
— Essas crianças enfrentam um conjunto único de fatores que impactam seu bem-estar e sua saúde mental. E vimos exemplos de tortura, de violência sexual, muitos exemplos de crianças que receberam treinamento militar — afirma Koundarjian. — O que estamos vendo é uma geração de crianças sob controle russo, particularmente os jovens, os meninos, que temem ter que lutar contra seu próprio país. E essa é uma questão extremamente grave que viola diversas leis internacionais.
Mas como disse Munir Mamazadze, representante do Unicef no país, as crianças ucranianas ainda “têm esperança em um futuro onde possam realizar seus sonhos”. É o caso de Sofia, de 17 anos, moradora de Kharkiv que desde pequena queria se tornar médica. Em 2023, ela ingressou em um programa do Unicef que ajudava alunos com dificuldades, e mais tarde se juntou a amigos para lançar uma iniciativa semelhante e voluntária para beneficiar outras crianças. Sofia foi aprovada em uma faculdade de Medicina em Vinnytsia, e não pretende deixar a Ucrânia depois de formada.
— Às vezes, é preciso esquecer-se de si mesmo para salvar alguém. Os médicos ucranianos são os heróis do nosso tempo. E agora, esse é o meu sonho. Quero me tornar uma médica de valor — afirmou, em depoimento ao Unicef.
