Eventos climáticos extremos ampliam insegurança alimentar e desafiam combate à fome
No ano passado, 8,2% da população global passou fome, segundo estimativa da ONU. Se considerada a insegurança alimentar em graus severos e moderados, a parcela chega a 28% — dois anos antes, porém, os números eram um pouco maiores: 28,5% e, no caso da fome, 8,7%. No Brasil, os índices de insegurança alimentar de 2024 são os menores da série histórica do IBGE, com 3,2% da população com insegurança alimentar grave, 5,5% em níveis moderados e 15% leve. Mas, em tempos de mudança no clima, nada garante que o declínio continue.
— Os eventos climáticos extremos e a fome estão intimamente ligados — explica Maria Dolores Castro Benitez, diretora regional para América Latina e Caribe do Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, que vem para a COP30. — Se nada for feito, a insegurança alimentar pode aumentar.
Projeções científicas justificam a preocupação. Segundo relatório Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), vinculado à ONU, mais de 10% da área mundial atualmente utilizada para agropecuária pode se tornar inadequada até 2050 em cenário de altas emissões de gases do efeito estufa.
No Brasil, o IPCC prevê redução de até 70% no milho. A estimativa está em um dos 88 estudos analisados pela economista Christiane Severo e outras duas pesquisadoras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
— Nos cenários mais pessimistas, para até o fim do século, encontramos projeções de redução de até 50% na produção de cana-de-açúcar, laranja e café e de até 30% no feijão e arroz para até o fim do século — diz Severo.
Diretora do Instituto Laclima, Caroline Frasson acrescenta:
— A grande maioria da produção agropecuária brasileira não é irrigada, o que a torna altamente dependente dos regimes de chuva.
E as chuvas estão menos frequentes. Um estudo do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostra que os dias secos consecutivos no Brasil passaram de uma média de 80 a 85 entre 1961 e 1990 para cerca de 100 dias nas décadas mais recentes.
Exemplos globais
Diante das mudanças, especialistas como Benitez pretendem discutir na COP formas de enfrentar o problema. Entre medidas positivas adotadas, a diretora do PMA menciona a recuperação de áreas degradadas, como manguezais revitalizados por indígenas e afrodescendentes no Equador e na Colômbia. Isso possibilitou o retorno da pesca e do plantio com técnicas tradicionais das comunidades.
Para Benitez, outro avanço vem do uso de sistemas de alerta rápido e de ação antecipada, que combinam informações meteorológicas e dados de campo para prever secas e inundações. Na Guatemala, a ferramenta permitiu neste ano a previsão de uma grande seca e o direcionamento de recursos.
A diretora do PMA também destaca o modelo brasileiro de alimentação escolar, que prevê compra de alimentos da agricultura familiar para a merenda. Paralelamente, surgem novas formas de tornar a agropecuária mais resistente às mudanças no clima, com melhor preparo do solo e o desenvolvimento de culturas mais tolerantes à seca e ao calor.
— Temos mais de 200 tecnologias que conversam com a questão climática, tanto em mitigação como em adaptação — ressalta o pesquisador Marcelo Morandi, da Embrapa.
Pesquisadora Mariangela Hungria, da Embrapa, ganhou Prêmio Mundial da Alimentação, com seu estudo sobre microrganismos aplicados nas sementes, no solo ou diretamente nas plantas para melhorar seu desenvolvimento
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Entre os destaques, estão os inoculantes, produtos formados por microrganismos aplicados nas sementes, no solo ou diretamente nas plantas para melhorar seu desenvolvimento. Estudos na área renderam à pesquisadora da Embrapa Mariangela Hungria o Prêmio Mundial da Alimentação, o Oscar da Agricultura.
Entre as soluções criadas em seu laboratório, estão inoculantes feitos com bactérias que convertem o nitrogênio do ar, abundante, mas não absorvido pelas plantas, em formas que os vegetais conseguem aproveitar. A tecnologia substitui em parte os fertilizantes químicos, grandes emissores de gases do efeito estufa.
Sua equipe vem desenvolvendo também técnicas para estimular o crescimento de raízes com hormônios produzidos por bactérias.
— Com isso, as plantas ganham mais capacidade de explorar o solo para buscar água — conta Hungria.
