Especialista alerta sobre riscos do projeto que dificulta acesso de menores vítimas de estupro ao aborto
Em entrevista ao Estúdio CBN, Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta, explica que a resolução do Conanda estrutura um direito em vigor desde 1940, e que o projeto que suspende a resolução é um retrocesso muito sério. A Câmara dos Deputados aprovou um projeto de decreto legislativo (PDL) que suspende decisão do Conselho Nacional da Criança e do Adolescente (Conanda) sobre acesso de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual ao aborto. O texto ainda deve ser votado pelo Senado.
Desde 1940, o Código Penal brasileiro garante a interrupção da gestação no caso de estupro. A Resolução 258/24 do Conanda é uma forma de garantir que não haja violações dos direitos de menores que engravidaram em decorrência de estupros e que não conseguiam acessar o aborto legal, segundo a professora de Direito Constitucional e presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer. Em entrevista ao Estúdio CBN, a advogada explicou que o direito à interrupção da gestação precisa ser regulamento, mas que não deve retirar os direitos das mulheres, e sim possibilitar que as vítimas de estupro recebam o atendimento e orientações adequadas.
O texto da resolução aponta que, no caso de divergência entre o desejo da criança e a de seus pais e/ou responsáveis em relação à gestão, é necessário que os profissionais de saúde recorram a Defensoria Pública e o Ministério Público para definir os procedimentos legais. Os autores do projeto defendem que esse trecho contraria o Código Penal, que atribuiria a decisão somente aos pais ou responsáveis, e que os menores seriam incapacitados civilmente.
Luciana explica que a resolução do Conanda foi criada basicamente para estruturar o fluxo de um direito que está garantido desde 1940, mas que não definia como esse direito poderia ser exercido. Por isso, em muitas situações a vítima era coagida a seguir com gestação.
"O Conanda viu todas essas violações de direitos que vinham acontecendo sistematicamente, não só pelo sistema de saúde, mas também pelo sistema de justiça, porque quando essa menina pedia autorização, sendo obrigada a pedir autorização, muitas vezes o juiz, a juíza, a promotora, elas negavam, insistindo que a menina seguisse com a gestação e depois desse para adoção. Isso não está na lei, isso é um desrespeito à lei e, sobretudo, é um desrespeito ao direito dessa menina de interromper a gestação".
Quase 60% dos casos de estupros sofridos por meninas entre 10 e 19 anos de idade acontecem dentro da própria casa da vítima e são praticados por familiares, segundo dados do Ministério da Saúde. Luciana explica que a decisão sobre a gestação estar concentrada apenas nos pais ou responsáveis, sem considerar a vontade da vítima, não é adequado.
"A gente sabe que 10% só dos casos de violência intrafamiliar são notificados, a maioria nem se sabe o que aconteceu. E é por isso que também a determinação da resolução do Conanda diz que se há divergência entre o desejo da menina e o desejo da família, o Ministério Público e a Defensoria devem atuar, devem interceder, e lógico, para garantir o direito dessa menina".
Com vários projetos em tramitação que visam a alteração dos direitos legais à interrupção da gestação, como por exemplo a proibição do aborto após a 22ª semana de gravidez e o PL da assistolia fetal, que equipara estupros realizados após esse período ao crime de homicídio, Luciana explica que a resolução, em vigência desde o ano passado, tem o objetivo de enfrentar esses movimentos em curso.
"Essa resolução do Conanda vem em resposta a esses movimentos que estão cerceando esse direito, e quando a Câmara a suspende, dizendo que essa resolução é ilegal, ela está legitimando essas falas que querem acabar com o aborto legal. A gente espera que o Senado não aprove esse decreto legislativo, mas este movimento, na verdade, legitima as vozes que querem, por convicções pessoais, impedir o direito de uma menina de 12 anos estuprada pelo pai que engravidou, interromper essa gestação".
