Entrevista: porta-voz da Anistia Internacional critica 'bullying climático' dos EUA e teme 'apagamento cultural' de povos

 

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O apagamento cultural de populações vulneráveis por conta das mudanças climáticas é um dos temas que Agnès Callamard, secretária-geral da Anistia Internacional, cobra ser debatido com prioridade na COP30. Em entrevista ao GLOBO, a ativista francesa pelos direitos humanos destaca contradições no discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), critica o "bullying climático" dos EUA e diz ver a conferência como uma das últimas oportunidades para a negociação de medidas que possam garantir a eficácia das metas presentes no Acordo de Paris.

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Como as mudanças climáticas podem apagar culturas de povos em vulnerabilidade?

No mês passado estive na Ilha de Tuvalu, na Oceania. A expectativa é que, até 2050, metade da área terrestre desapareça por conta do avanço das águas. Até o fim do século, o país pode ter 95% do território invadido pela elevação do nível do mar. A população vive da pesca e da agricultura há séculos. Eles não são causadores das mudanças climáticas e estão, agora, enfrentando a destruição completa de suas casas, da cultura e da história do povo. É inaceitável. Os responsáveis por isso vivem a milhares de quilômetros de distância e, nos últimos dois ou três séculos, travaram uma guerra contra a natureza. A exploração de todos esses recursos poluidores levou Tuvalu à beira do desaparecimento. Os países responsáveis devem pagar por medidas de adaptação e apoiar o povo da ilha para que consiga recuperar as terras.

Qual seria uma possível forma de solucionar essa questão?

Os países mais ricos estão muito relutantes em reconhecer a responsabilidade deles pelas mudanças climáticas e arcar com os custos. Por isso, o financiamento climático é tão importante para garantir justiça social às nações em vulnerabilidade, que não são as que mais poluíram historicamente, mas são as que mais sofrem as consequências das altas temperaturas. Esses países precisam de ajuda.

Há espaço para essa discussão na COP30?

Não há como pensar em uma transição energética — que é necessária — sem buscar financiamento. Essa precisa ser uma prioridade da COP30.

Quais devem ser as principais metas dos negociadores na COP30?

A conferência vai precisar reafirmar os processos multilaterais e confrontar nações que tentam fingir não haver mudanças climáticas. A COP30 será calcada em objetivos coletivos e em confrontar Donald Trump (presidente dos Estados Unidos) ou outros líderes que tentam atrapalhar os esforços pela conservação do planeta. Outra prioridade é combater a resistência à redução do uso de combustíveis fósseis. Não temos mais muitas chances para conseguirmos concretizar as metas do Acordo de Paris. Essa COP é um momento decisivo e importante para a existência de vida no mundo. Espero que o presidente Lula honre os compromissos para que haja resultados.

A não participação do governo americano na COP30 é um sinal preocupante para a conferência?

Temos que lembrar que muitos americanos estão comprometidos com a causa ambiental. Temos uma grande delegação vindo da Califórnia para Belém, composta por senadores, membros do Congresso e representantes da sociedade civil. O que Trump externa não é o que pensa a maior parte da população do país. Acho que, se o governo dele estivesse presente na COP30, tentaria minar o que os negociadores querem alcançar. Devemos deixar claro que não há espaço para negacionistas e para quem pratica bullying climático nas negociações.

A senhora observa contradições na atuação do presidente Lula?

O governo brasileiro precisa fazer mais pelo meio ambiente, porque concedeu uma licença para perfurar na Foz do Amazonas. Sabemos que isso terá um impacto muito negativo na natureza local, nas populações e no clima. O Brasil investir em petróleo não é uma boa ideia, e representa uma contradição com a tentativa de Lula de liderar a discussão da transição energética. Essa licença não é boa para a COP30 ou para a imagem do presidente, além de ferir a credibilidade brasileira nas negociações.

Como uma transição energética auxiliaria na garantia de direitos humanos e justiça social?

Aqueles que não querem a transição costumam ser violentos e atacam aqueles que buscam justiça climática. Realizar a transição energética é uma forma de proteger essas pessoas e garantir o respeito aos direitos humanos, além de ser uma maneira de proteger as futuras gerações das consequências das mudanças climáticas. Estamos falando de direitos civis e políticos, mas também do direito à saúde, à alimentação, à terra e à água.

A sociedade civil está mobilizada nesta COP?

A sociedade civil foi silenciada nas três COPs anteriores. As pessoas não foram apoiadas para se manifestarem e foram violentamente reprimidas. Há uma mudança de paradigma no cenário brasileiro. A COP30 tem demonstrado um compromisso real em incluir a voz da sociedade civil. Pode não ser suficiente. As ONGs e os povos indígenas podem querer mais, mas é inegável o avanço existente.