Entrevista: ‘A Cracolândia está fluida, e não foi por falta de drogas que se espalhou’, afirma promotor de SP

 

Fonte:


Há 13 anos atuando na área da saúde pelo Ministério Público de São Paulo, o promotor de Justiça Arthur Pinto Filho diz conhecer bem o roteiro. Sempre que anos eleitorais se aproximam, intensificam-se as operações violentas contra usuários de drogas no Centro da capital paulista. Com a dispersão de dependentes químicos e o esvaziamento das grandes aglomerações, os governantes vêm a público para anunciar o fim da chamada Cracolândia. Seis meses após a mais recente investida do tipo, o governo estadual repete a história e declara o suposto fim do chamado "fluxo".

Extração irregular de minério: Associação de vítimas condena acordo entre Braskem e governo de Alagoas para reparar afundamento de bairros

Pajubá: MPF pede que linguagem cifrada criada por trans e travestis seja reconhecida como patrimônio imaterial do Brasil

Segundo Filho, porém, a Cracolândia apenas se espalhou. Na avaliação dele, os usuários seguiram três caminhos: estabeleceram-se em outros pontos do Centro, após sofrerem abordagens da Guarda Civil Metropolitana (GCM); foram para comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, por vezes em breves internações, com retorno para as ruas cerca de 15 dias depois; e, por fim, para as prisões, possivelmente tachados como traficantes de drogas.

Outros governos já decretaram o fim da Cracolândia. Desta vez, acabou mesmo?

O fluxo não acabou, só se espalhou pelo Centro. Se você andar por ali, pela Marechal Deodoro, por debaixo do Minhocão, vai ver que as pessoas estão lá. O espalhamento se deu por várias causas. A primeira é que houve uma violência da GCM muito forte na região o ano todo, mas que se agudizou de março para frente. As pessoas que estavam no fluxo tradicional não aguentaram e foram embora. Não sei quem articulou a saída. Mas, em um determinado dia, todo mundo saiu. A segunda causa é que, desta vez, eles mandaram não apenas para comunidades terapêuticas, mas também para hospital psiquiátrico. A maioria das internações é voluntária: o usuário entra e sai quando quer. O que acontece com esse tipo de internação? Uma lei de 2019 estabelece que o único objetivo dela é tirar do surto. E o máximo que se pode ficar são 90 dias. Nós fomos ao Hospital Cantareira checar o quanto estão ficando: entre 15 dias e 20 dias. Em terceiro, ocorreram muitas prisões de usuários que são tidos como traficantes. Gente com pouca quantidade de droga. Mas que acaba sendo condenado porque a lei ainda não estabelece exatamente a quantidade (que deixa de ser porte para consumo para ser considerada tráfico). O que vale é a palavra do GCM que fez a prisão.

O estado tem oferecido assistência social e de saúde satisfatórias?

Não. O que o estado e município fizeram foi tornar a situação do Centro cada vez mais caótica e selvagem. Foram retirando dali todos os serviços de assistência e saúde. Tiraram, por exemplo, um Caps (Centro de Atenção Psicossocial) que trabalhava muito bem. Acabaram com as tendas, aqueles lugares em que as pessoas podiam tomar um café ou lavar roupa, ir ao banheiro. Uma coisa horrenda. Foi uma articulação em que, por um lado, promoveu violência. Por outro, retirou a estrutura que garantia o mínimo de civilidade que tinha nesta região.

O senhor está se referindo a qual governo?

Ao governo atual. Esses dois governos: estadual e municipal, que atuam em conjunto, em consonância, como nunca se viu antes.

Qual o principal problema do programa atual de reinserção dos usuários à sociedade?

No primeiro mês que o governo tomou posse, houve a apresentação de um plano muito bom para a Cracolândia, mas não se realizou. O projeto tinha, por exemplo, a previsão de construir duas mil casas da Vila Reencontro (programa da Prefeitura que oferece moradia transitória a pessoas e famílias em situação de rua). Eles até fizeram algumas, mas nenhuma dessas casas foi utilizada pelo pessoal da Cracolândia. Porque, para pegar uma casa dessas, eles exigem que a pessoa fique em abstinência. Mas você não consegue tirar alguém que está na Cracolândia e, de um dia para o outro, deixá-lo em abstinência. É preciso um processo de redução de danos até lá.

Qual a consequência dessas ações?

Por que isso tudo é um engodo? Não tem porta de saída nenhuma. A pessoa vai para a comunidade terapêutica ou para o hospital psiquiátrico, fica lá 15, 20 dias, 30 que seja. Quando sai, não tem trabalho nem moradia. Não tem nada: a pessoa sai como entrou. Aí a gente chamou esse pessoal todo para dar explicação. Eles responderam que as pessoas são encaminhadas ao Caps. Fomos verificar, por amostragem, o que aconteceu com elas. Mas não aconteceu nada. Sem porta de saída qualificada, é um enxugar de gelo.

O governo estadual afirma que a operação policial na Favela do Moinho foi imprescindível para o fim da Cracolândia. O que o senhor acha desta avaliação?

O tráfico de drogas não acabou no Centro e em nenhum outro lugar da capital. A Cracolândia não se espalhou por falta de droga. Isso não existe. Ela se espalhou por conta dessas razões que eu te dei.

É a primeira vez que a Guarda Civil Metropolitana se envolve nessas operações com este protagonismo?

Exatamente. Em 2012, a operação Dor e Sofrimento foi realizada pela PM. As posteriores também. Sempre teve GCM no território. Mas ela nunca foi a linha de frente. Quando ia varrer as ruas, ia lavar, a guarda praticava uma coisa ou outra. Mas não era uma coisa sistêmica como é hoje. Agora, é uma política pública de violência, não uma coisa isolada do soldado, do guarda. Nós ouvimos o secretário [Municipal de Segurança Urbana de São Paulo, Orlando Morando], que negou completamente que tivesse dado ordem… Mas sempre fico pensando o seguinte: como pode ser uma coisa individual se está sistematizada e em toda guarnição? Uma guarnição não age contra uma ordem explícita do comandante.

Essas operações, pela experiência do senhor, sempre precedem ano eleitoral?

Sempre. Elas não são necessariamente no ano eleitoral, mas são utilizadas pelos governos, na verdade, para enganar. Agora, como outras vezes, a Cracolândia não acabou. Está fluida na capital, e não foi por falta de drogas que se espalhou.