Criado no Cantagalo, 'Pikachu' brilha no Arpoador e sonha com o surfe mundial
No canto de Ipanema, sob a moldura do Morro Dois IrmĂŁos e o som das ondas batendo nas pedras, fica o crowd mais icĂ´nico do Rio. É ali, nesse famoso pico de ondas de esquerda, entre as risadas dos amigos e o cheiro de água salgada, que Anderson da Silva, o Pikachu, aprendeu a se equilibrar entre o morro e o mar. Hoje, aos 25 anos, ele Ă© conhecido como o “PrĂncipe do Arpoador” — tĂtulo que nasceu de uma brincadeira entre amigos durante uma viagem a RegĂŞncia (ES) e logo se espalhou pela praia.
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Cria do Cantagalo, Pikachu encontrou nas ondas uma vocação e uma casa. Foi o tio Cunca quem lhe deu o apelido, inspirado no personagem japonĂŞs que o menino adorava, e tambĂ©m a primeira prancha. Cunca, surfista habilidoso, morreu dentro d’água, na Praia do Diabo, ao lado do Arpoador. Depois da perda, a avĂł LĂdia Santos, a “Fia”, assumiu o papel de guardiĂŁ. Dona da tradicional Barraca da Fia há mais de 30 anos, Ă© figura lendária da areia. Levava o neto com ela todos os dias, e ali, entre guarda-sĂłis, cangas e pranchas, ele aprendeu a respeitar o mar e a conviver com a tribo do surfe.
Mentores e herança
As primeiras ondas vieram antes dos cinco anos, empurrado pelo tio Denilson Thyola — surfista, ex-atleta profissional e um dos fundadores do Favela Surf Clube (FSC), projeto social que revelou dezenas de jovens do Cantagalo. Foi ali que Pikachu entendeu que o mar também era dele, que podia ser espaço de sonho e de trabalho.
Pikachu e Dona Fia
Henrique Foca
Outro mestre dessa trajetória é Jean Carlos, professor há 24 anos da escolinha Surf Glória, uma das mais tradicionais do Arpoador. Foi ele quem organizou o primeiro campeonato do surfista.
— O surfe transformou a vida de muita gente. Além de um esporte que a gente ama, virou um ganha-pão, uma profissão — diz Jean.
Pikachu entre Jean e Thyola
J InocĂŞncio
Antes das seis da manhã, Jean já está na areia, observando o mar e postando o boletim do dia. Dentro da água, canta o hino do Botafogo, brinca com os alunos, incentiva a garotada. Assim como Pikachu e Thyola, ele também nasceu no Cantagalo e conhece cada corrente e cada rosto do pico:
— Hoje o crowd do Arpoador é uma mistura de tudo: alunos iniciantes, surfistas experientes, estrangeiros, moradores do asfalto e de comunidade.
Jean lembra que o surgimento das escolinhas foi fundamental para democratizar a praia, antes vista como território restrito. O Favela Surf Clube, criado nos anos 2000, mudou essa percepção e formou não só atletas, mas também professores. Muitos deles hoje vivem do surf e— e alguns, como Pikachu, viraram referência para as novas gerações.
A rotina e os sonhos
A rotina do “PrĂncipe” Ă© quase militar: acorda cedo, alonga, surfa, faz treino fĂsico e psicolĂłgico. Nos intervalos, dá aula. Compete em campeonatos locais, estaduais e nacionais, alĂ©m das etapas sul-americanas do Qualifying Series (QS), o circuito que dá acesso Ă elite mundial.
— A vida de atleta profissional Ă© cara. As viagens, as inscrições... uma etapa do QS pode passar de mil reais. Para quem nĂŁo tem patrocĂnio, Ă© difĂcil participar de todas as competições — conta ele.
Além de competir, Pikachu tem escolinha com aulas de surfe no Arpoador
Fabiano Rocha / AgĂŞncia O Globo
Jean reconhece as barreiras que ainda se impõem no esporte:
— Sem dĂşvida Ă© mais difĂcil de chegar o patrocĂnio para quem nĂŁo Ă© “branquinho”. Ele deveria ter um salário mensal para conseguir focar na carreira profissional, como um contrato de trabalho.
As referências de Pikachu vêm do próprio Arpoador. Uma das maiores é Simão Romão, bicampeão do QS no Rio, que o levou ao Havaà em 2012. A viagem só aconteceu com a ajuda de rifas e doações no projeto “Bonde do Simão”. Desde então, o mar o levou longe: surfou em diversos estados brasileiros e, ainda em 2025, embarca para a Nicarágua para uma temporada de treinos.
Inspirado, o “PrĂncipe”, entre um campeonato e outro, comanda a Pikachu Surf School, onde ensina das seis da manhĂŁ atĂ© o meio da tarde, quando as condições do mar permitem. Nos intervalos entre as aulas, Ă© comum vĂŞ-lo pegando uma ou duas ondas, sĂł para nĂŁo perder o ritmo. A mais recente vitĂłria veio em setembro, no Campeonato Arpoador Surf Clube, em um dia de mar clássico na praia, quando a onda vem grande de trás da pedra..
Melhor surfista do Arpoador e cria do Cantagalo , Pikachu representa o talento e a garra da nova geração formada nas areias da praia
Fabiano Rocha / AgĂŞncia O Globo
Um dos momentos mais marcantes de sua trajetĂłria foi quando venceu o surfista JoĂŁo Chianca, o Chumbinho, em uma bateria do QS na Prainha. Agora, ele disputa a Taça Brasil, cuja prĂłxima etapa será na Guarda do EmbaĂş, em Santa Catarina. O sonho Ă© claro: conquistar o tĂtulo brasileiro e uma vaga no CT, a elite mundial.
A cada resultado, o reconhecimento cresce. Pikachu já foi parado na rua por crianças de diferentes comunidades e por pais que dizem ter comprado pranchas para os filhos depois de vĂŞ-lo surfar. No BrizolĂŁo, onde fica o elevador que liga o Cantagalo a Ipanema, um grafite com seu rosto se transformou em sĂmbolo de orgulho local.
— Ele sempre teve a mente boa. Quem vem da favela já carrega um peso diferente. Quando fui seu treinador, nunca gritei nem cobrei demais. Eu dizia: “entra no mar e se diverte — diz o tio e mentor Denilson Thyola.
Grafite com rosto de Pikachu no BrizolĂŁo, onde fica o elevador que liga o Cantagalo a Ipanema, se transformou em sĂmbolo de orgulho local
Reprodução
Entre o morro do Cantagalo e o mar do Arpoador, Pikachu segue firme, sustentado por uma mistura de fĂ©, disciplina e paixĂŁo. Vive do surfe — e para o surfe —, guiado pelos mestres e guardiões que o formaram. No Arpoador, o PrĂncipe reina com o brilho tranquilo de quem fez do sonho o prĂłprio caminho.
