COP30: Relatórios apontam que doações excluem periferias e ignoram a transição justa

 

Fonte:


Enquanto líderes globais debatem compromissos bilionários de descarbonização na COP30, em Belém, outro tema ganha força nos bastidores: quem realmente tem acesso ao dinheiro do clima. Apesar do discurso de inclusão e sustentabilidade, os recursos filantrópicos climáticos continuam concentrados nas mãos de grandes organizações e instituições do Norte Global e, no recorte brasileiro, no eixo Sul-Sudeste, deixando as periferias e comunidades tradicionais de fora do circuito de doações e da tomada de decisões, além de reforçar as desigualdades. É o que apontam relatórios lançados este mês pelo Iniciativa PIPA e pela ActionAid.

Nesta quarta-feira, a PIPA apresentou o documento "Diretrizes para a Filantropia Climática" em parceria com o Coletivo MIRÍ, em um evento paralelo à COP, em Castanhal, no Pará. Segundo o levantamento feito no país, 82,3% das organizações periféricas afirmaram realizar ações ligadas à agenda climática, enquanto apenas 15,9% conseguiram acessar recursos específicos de clima.

Já o novo relatório global da ActionAid traz o seguinte dado: menos de 3% das iniciativas de financiamento climático apoiam abordagens baseadas no conceito de transição justa — ou seja, aquelas que incluem populações negras, indígenas, periféricas e tradicionais nas decisões sobre mitigação e adaptação climática.

Essas iniciativas, segundo o estudo, deveriam colocar no centro o trabalho decente, a proteção social e as políticas reparatórias e antirracistas.

— Não é possível falar em solução climática sem transição justa. Planos de mitigação que desconsideram os territórios e suas populações acabam criando novas violações de direitos. Hoje, muitas propostas de transição seguem baseadas em modelos predatórios. Mesmo quando se fala em ‘mineração verde’, o resultado continua sendo a degradação ambiental e social — afirma a especialista em Justiça Econômica da ActionAid Brasil, Maryellen Crisóstomo.

No segundo dia das negociações da COP30, países do G77 + China se uniram para defender a criação de um novo mecanismo global para garantir uma transição justa. Há a expectativa de que um passo concreto seja dado na conferência com a institucionalização do “Mecanismo de Ação de Belém”, que tem potencial de reconhecer a urgência das transformações nos sistemas alimentares e o lugar da agricultura familiar e da agroecologia na transição.

— Uma abordagem global permitiria coordenação, aprendizado conjunto e apoio à implementação, evitando que cada país atue de forma isolada e desordenada. Ao fortalecer a participação de trabalhadores, comunidades e povos tradicionais na definição dos planos de transição, garantimos que a mudança seja orientada pelas pessoas que vivem os impactos da crise climática. É preciso lembrar que financiamento é indispensável. Uma transição justa só será possível se os recursos climáticos realmente apoiarem ações centradas nas pessoas — diz Maryellen Crisóstomo.

Para ilustrar o modelo predatório, Maryellen cita o caso de usinas eólicas instaladas no Nordeste, em especial em Caetés (PE), onde famílias foram forçadas a deixar suas terras devido ao ruído e dos impactos das turbinas.

— Há relatos de crianças tomando remédios para dormir. Isso não pode ser chamado de solução climática — critica.

Financiamento concentrado e burocrático

A dificuldade de acesso aos fundos climáticos é um dos principais entraves para a inclusão. Os mecanismos de financiamento foram criados para organizações formalizadas, com CNPJ, equipe técnica e capacidade de prestação de contas complexa. Isso exclui uma imensa rede de coletivos, associações informais e lideranças comunitárias.

Sem registro formal, os coletivos ficam impedidos de firmar convênios, abrir contas bancárias ou emitir recibos — o que os torna invisíveis para os fundos climáticos tradicionais.

— Isso não significa que sejam menos sérios ou legítimos. É o modelo de doação que precisa mudar. Precisamos de instrumentos jurídicos intermediários, fundos comunitários e mecanismos de repasse simplificados, que acolham iniciativas sem CNPJ, sem expor doadores a riscos legais — diz Nildamara Torres, coordenadora de pesquisa da Iniciativa PIPA.

Além das barreiras burocráticas, há as políticas e estruturais. As decisões sobre onde e como aplicar os recursos continuam sendo tomadas longe das periferias, que também são produtoras de soluções. Segundo o relatório da Iniciativa PIPA, as ações desenvolvidas por essas organizações atingem principalmente a população negra (85,8%), jovens (67,3%) e mulheres (54%).

As práticas de resistência e adaptação climática nas periferias brasileiras são diversas. Hortas comunitárias, projetos de eco construção, sistemas de captação de água e sensores de baixo custo para alerta de enchentes são alguns exemplos citados pelas 113 organizações ouvidas pela PIPA.

— A crise climática não é neutra: ela tem cor, gênero e território. O financiamento passa a ser não apenas um investimento ambiental, mas também uma ferramenta de justiça social. Ao priorizar territórios mais vulneráveis, reconhece-se que a justiça climática é inseparável da justiça racial e territorial, e que a equidade só será alcançada quando o dinheiro chegar primeiro a quem historicamente foi deixado por último — argumenta Nildamara Torres, coordenadora de pesquisa da Iniciativa PIPA.

Segundo a organização, no entanto, essas ações são raramente reconhecidas como parte da infraestrutura climática do país.

— O debate climático é centrado em indicadores de carbono e soluções tecnológicas, na maioria das vezes ignorando o cotidiano vivenciado nos territórios periféricos, onde o clima se manifesta da forma mais brutal. Cria-se um cenário no qual, o financiamento que deveria reparar desigualdades, acaba por aprofundá-las, reforçando a distância entre quem decide e quem sente os impactos da crise climática — afirma Nildamara Torres.