Como as ondas de calor geram impacto no corpo e sobrecarregam o SUS

 

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A mudança climática é inimiga da saúde. O alerta dado por cientistas há décadas agora se materializa em toda parte mundo afora e deve receber atenção inédita na COP30. Extremos do clima, sobretudo o calor, se impuseram como agenda nas cúpulas climáticas. A saúde é o impacto da mudança climática que mais nos afeta e mobiliza, salienta Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP). Ele é pioneiro no estudo do impacto do meio ambiente sobre a saúde no Brasil.

Estudos do grupo dele já mostraram que, em São Paulo, os extremos do clima aumentam o risco de morte em 50%. Dos extremos, o maior vilão é o calor. Saldiva defende que junto com a previsão do tempo seja apresentada uma de riscos para a saúde associados às condições meteorológicas.

— Ao alertar para riscos, (a previsão) aumenta a consciência e diminui o risco individual, mas também desafoga o sistema de saúde. Também torna as pessoas mais conscientes sobre a necessidade de mitigar as mudanças climáticas — diz.


Saldiva observa que o Brasil construiu com o SUS uma sólida base de dados de saúde, mas o sistema ainda precisa se adaptar aos novos tempos:

— Nosso sistema foi moldado para prever riscos para doenças transmitidas por mosquito e problemas de saneamento. Mas não para a elevação da temperatura. Isso também contribui para que o real impacto do calor seja subestimado.


Impacto do calor para gestantes

Arte/ O Globo

O relatório Observatório Lancet de Saúde e Mudança Climática estima que, entre 2012-2021, o Brasil registrou 3.600 mortes anuais relacionadas ao calor — 4,4 vezes mais que em 1990-1999. Ainda assim, é menor que o estimado por cientistas, porque o calor não é apontado como causa da morte da maioria de suas vítimas: quase sempre mata ao agravar doenças preexistentes, como as cardiovasculares, metabólicas, renais e pulmonares.

O que deflagra uma crise é a temperatura extrema, que faz com que muita gente morra antes da hora. O calor agrava condições preexistentes de saúde, porque estressa todo o organismo. E mesmo pessoas saudáveis podem sofrer complicações, se expostas a temperaturas extremas por períodos prolongados. Um estudo da Universidade do Havaí identificou 27 distúrbios pelos quais o calor pode matar ao prejudicar pelo menos cinco mecanismos fisiológicos diferentes.

Onda de calor no Rio; pedestres se refrescam em sombra

Márcia Foletto

Estudos nacionais citados por Saldiva mostram ainda que cada 1°C a mais na temperatura média leva a 0,9% de internações por doenças renais. Além disso, o aumento de 5°C na temperatura diária está associado a elevação de 10,6% de homicídios.

O calor, tem salientado repetidamente a Organização Mundial de Saúde (OMS), aumenta os casos de violência e doença mental. Essa última associação muitas vezes é ignorada, afirma a pesquisadora Helen Gurgel, coordenadora do Laboratório de Geografia, Ambiente e Saúde da Universidade de Brasília (UnB).

Explosão de atendimentos

No início deste ano, o município do Rio de Janeiro viu a demanda por atendimento na rede pública de saúde aumentar. O calor de janeiro e fevereiro levou mais de cinco mil pessoas a buscarem atendimento médico em unidades do SUS desde o início de 2025, de acordo com a Secretaria Municipal de Saúde (SMS-RJ).

Adaptação às mudanças do clima é crucial para evitar sofrimento, adoecimento e morte e deve ser feita com urgência, diz Saldiva. O ritmo das mudanças climáticas supera o da aclimatação do organismo humano. Ao longo dos milhares de anos em que se espalhou da África para o resto do planeta, o ser humano soube se adaptar a condições tão díspares quanto as das savanas africanas e as regiões árticas. Porém, as mudanças climáticas associadas à ação humana ocorrem mais rápido do que o organismo humano consegue se adaptar.

— A variabilidade do tempo em poucos dias, a severidade das ondas de calor, tudo isso dificulta nossa capacidade de adaptação. Ela existe, mas tem limites que as mudanças do clima que nós mesmos provocamos nos obrigam a enfrentar — frisa o professor da USP.

Ele acrescenta que um estudo global revelou que as ondas de calor respondem por parcela relevante das mortes associadas ao calor e que medidas específicas contra elas têm resultado. Exemplo é Paris que vem reduzindo a mortalidade por meio de medidas variadas, que vão de alertas a atendimento de idosos.

O Brasil tem avançado com iniciativas como o Plano Nacional de Adaptação que, uma vez concluído, deve estabelecer indicadores e diretrizes de ação.

O laboratório de Helen Gurgel realiza com o Ministério da Saúde um projeto para estabelecer diretrizes nacionais sobre como atuar em situações de emergência climática associadas ao calor. O trabalho deve estar concluído até o fim do ano.

Os pesquisadores identificam quais os indicadores de risco mais sensíveis nas diferentes regiões do Brasil.

— Sabemos que os índices adequados para o Sul são diferentes dos do Norte ou Sudeste. E quanto mais ao Norte, pior a situação nos últimos dez anos. Além disso, determinadas profissões são mais expostas do que outras. Catadores de lixo, garis, trabalhadores rurais e da construção civil, por exemplo, têm altos níveis de doenças renais devido à desidratação associada à exposição ao sol — diz Gurgel.

Por ora, o Rio é o único município brasileiro com um protocolo bem estabelecido contra o calor, que consiste em um sistema integrado de alerta e resposta rápida com cinco níveis para proteger a população. A iniciativa é finalista do Prêmio Climático Bloomberg Philanthropies 2025. O prêmio será anunciado no Rio em novembro.

Como se proteger e identificar riscos

Hidratação ajuda: é importante se hidratar bem, mesmo sem sede. Seu corpo precisa manter constante a temperatura interna por volta de 36,5ºC, não importando a temperatura exterior. Em dias muito quentes, para conseguir isso, o corpo fica sobrecarregado. A sensação de desconforto é grande. A urina é um bom indicador da hidratação. Quanto mais escura, pior a hidratação.

Suor é fundamental: suor é vida. É assim que nosso corpo expulsa até 80% do calor e evita colapsar. Em dias excepcionalmente quentes, uma pessoa pode suar até dez litros. Sem água, o sangue fica viscoso. E isso afeta o funcionamento de rins e coração, que precisam fazer esforço extra. A desidratação provoca vasoconstrição, que traz risco de trombose e de derrame.

Roupas claras: use apenas roupas claras em dias quentes porque absorvem menos calor. Preto jamais. E as roupas devem ser largas para não sabotar outro de nossos mecanismos de defesa contra o calor, que é a vasodilatação. O corpo tenta se livrar do calor o irradiando através da pele. É assim que ele tenta levar para a superfície da pele o excesso de calor dos órgãos, para que seja expulso.

Banho e refrigeração: banho frio é importante. E os panos úmidos também ajudam a amenizar o sofrimento. Além disso, é ponto pacífico que, sob calor extremo, o mais seguro para a saúde é ficar em ambientes refrigerados. Ventiladores ajudam até cerca de 35ºC, se estiver úmido. Acima disso ou até menos em clima seco, o efeito é contrário, de uma airfryer.

Exercícios: deve ser evitado nas horas mais quentes e jamais ser feito ao sol. Ele pode aumentar em até 15 vezes o calor produzido pelo próprio corpo transformando o organismo numa fornalha. Apenas 20% da energia gasta para movimentar um músculo é usada na contração propriamente dita. Os outros 80% o corpo gasta para liberar o calor.

Adaptação é limitada: é possível conseguir certa tolerância após dias de exposição a temperaturas elevadas até 35°C. Mas o biometeorologista Fabio Gonçalves, da USP, diz que é impossível se adaptar a temperaturas na casa dos 40°C. Além disso, bastam algumas horas no ar condicionado para a adaptação ser perdida. A termorregulação do corpo é desequilibrada pela radical variação de temperatura.

Cuidado com limites: com a temperatura igual ou superior a 37°C com mais de 70% de umidade do ar, qualquer pessoa pode começar a ter problemas de saúde. Cientistas estimam que qualquer um passará mal se permanecer mais do que seis horas a 45°C com 50% de umidade, com sensação térmica de 71°C. Segundo estudos deste ano, alguns lugares do mundo têm registrado valores térmicos acima desse limite.

Não precisa de muito: não é preciso chegar a 40°C para haver risco. Estudos do grupo de Paulo Saldiva, da USP, revelaram que, quando o termômetro supera os 29°C em São Paulo, aumenta em 50% o total de mortes por causas naturais. A exaustão acontece quando a temperatura supera a capacidade de resfriamento. Os primeiros sinais são pele avermelhada e seca, cansaço, tonteira, náuseas e enjoo.