
Com fome, crianças comem ração animal em cidade sitiada por 'guerra ignorada' no Sudão

O último hospital em funcionamento na cidade de El-Fasher, no Sudão, foi bombardeado mais de 30 vezes. Entre 30 e 40 crianças gravemente desnutridas chegam todos os dias em busca de ajuda. Não há nada a oferecer a elas além de ração animal. O local é considerado o pior campo de batalha da guerra civil do Sudão. Há quase 18 meses, a cidade, na região ocidental de Darfur, está sitiada por paramilitares que tentam conquistá-la através da fome.
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— Até nós estamos comendo ração animal — disse o médico Omar Selik, inclinando a câmera durante uma chamada de vídeo para mostrar sua refeição: uma pasta viscosa feita de amendoins prensados, normalmente dada a vacas, camelos e burros: — Não há outra coisa.
Combatentes ergueram um muro de terra de 32 km ao redor da cidade. Isso deixa os moradores com escolhas desesperadoras: ficar e arriscar ser bombardeado ou morrer de fome; fugir e correr o risco de ser morto, roubado ou agredido sexualmente.
— As pessoas parecem ter se esquecido de nós — disse Selik, rompendo em lágrimas: — Meu Deus, é uma história muito dolorosa.
Dois anos de conflito
O conflito no Sudão começou há mais de dois anos, quando confrontos eclodiram entre o Exército sudanês e seu rival paramilitar, as Forças de Apoio Rápido (FAR). A guerra já forçou cerca de 12 milhões de pessoas a deixarem suas casas, matou dezenas de milhares e provocou uma grave crise de fome.
Desde março, quando as FAR foram expulsas da capital, Cartum, o grupo intensificou os ataques a Darfur, região de onde vem a maioria de seus combatentes. El-Fasher é a última cidade em seu caminho. Mais de 500 mil pessoas fugiram da cidade desde abril, quando as FAR invadiram Zamzam, um campo a 11 km ao sul, matando entre 300 e 1,5 mil pessoas, segundo a ONU.
Imagem de satélite divulgada pela Maxar Technologies, feita em 16 de abril, mostra veículos armados na borda leste do campo de Zamzam após ter sido tomado por paramilitares das Forças de Apoio Rápido
Satellite image ©2025 Maxar Technologies via The New York Times
Em maio, o grupo começou a cercar El-Fasher com um muro de terra, segundo imagens de satélite da Escola de Saúde Pública de Yale. Em 27 de agosto, a construção ainda estava em andamento.
Estima-se que 260 mil pessoas permanecem na cidade, presas pelo cerco. Um quilo de macarrão custa US$ 73 — dez vezes o preço normal —, de acordo com Taha Khater, um dos poucos trabalhadores humanitários ainda na cidade. Seu grupo, Emergency Response Rooms, registrou a morte de 14 crianças por desnutrição nas últimas duas semanas. A cólera se espalha.
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Comboios de alimentos das Nações Unidas, que não conseguem chegar a El-Fasher há mais de um ano, foram atacados por drones. Um ataque em junho matou cinco trabalhadores; outro, no mês passado, destruiu três caminhões. Não está claro qual lado realizou os ataques.
Jovens que tentam escapar da cidade, escalando o muro à noite, foram executados por combatentes, disse Khater.
Grupos humanitários internacionais oferecem ajuda em Tawila, cidade a 64 km dali, agora com mais de 600 mil refugiados. A viagem, porém, é perigosa: combatentes patrulham a estrada, roubando e extorquindo civis. Covas cavadas às pressas e corpos abandonados foram relatados por trabalhadores humanitários.
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O Exército sudanês também foi acusado de crimes de guerra, incluindo ataques a mercados lotados perto de El-Fasher, que mataram centenas de pessoas. Em janeiro, os Estados Unidos impuseram sanções ao general Abdel Fattah Burhan, líder do Exército, pelo suposto uso de armas químicas.
As RSF, por sua vez, foram acusadas de genocídio. Neste mês, investigadores da ONU concluíram que as atrocidades cometidas por suas tropas em El-Fasher configuram crimes contra a humanidade. Um porta-voz do grupo não respondeu a perguntas.
Cerco fechado
O envolvimento estrangeiro agravou o cerco. Os Emirados Árabes Unidos forneceram armas, drones e apoio médico às RSF, segundo o The New York Times. O governo sudanês enviou um dossiê à ONU acusando os Emirados de contratar mercenários colombianos, conhecidos como Desert Wolves, para lutar ao lado das RSF.
Hospitais são alvo principal no conflito. Dos cerca de 200 centros médicos em El-Fasher antes da guerra, apenas um permanece: o hospital Al Saudi, onde médicos resistem apesar de bombas, fome e falta de remédios.
O hospital foi alvo de ataques mais de 30 vezes. O pior ocorreu em janeiro, quando um drone das RSF lançou um míssil em um setor lotado, matando 70 pacientes, disse Suleman, médico sênior.
Agora, médicos se abrigam em trincheiras durante os bombardeios, e pacientes desnutridos são alimentados com ração animal, disse Suleman, que pediu anonimato por segurança.
A ração, conhecida localmente como ambaz, é propensa à contaminação por fungos, especialmente na estação chuvosa. Pelo menos 18 moradores morreram nas últimas semanas após consumi-la, segundo socorristas locais.
— Mas não há outra opção — disse Suleman.