Antônio Gois: O jabuti do ensino domiciliar no PNE

 

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Já atrasada há mais de um ano, a aprovação do novo Plano Nacional de Educação foi retardada mais uma vez neste fim de ano pela tentativa de inclusão de um destaque que liberava o ensino domiciliar no Brasil. Ainda que tudo seja educação, é um típico Jabuti, pois o objetivo do PNE é estabelecer as grandes metas a serem priorizadas por União, estados e municípios. A regulamentação do homeschooling nem de longe se aproxima disso.

É fato que a prática é permitida em alguns países, mas, em geral, é sempre restrita a uma ínfima minoria, sendo altamente regulamentada. Além disso, em nenhum — absolutamente nenhum — sistema educacional de alto desempenho no mundo a modalidade é vista como alavanca para melhoria da qualidade em massa.

No Brasil, o lobby pelo ensino domiciliar tem forte conotação religiosa, copiando um modelo dos Estados Unidos. O alvo é a escola pública, laica e gratuita, entendida por esses grupos como uma ameaça às suas crenças individuais. Mas há também interesses privados envolvidos, pela abertura de um mercado para venda de materiais didáticos específicos para as famílias que adotarem a prática.

Defensores do ensino domiciliar argumentam que seus filhos estarão mais protegidos em casa e que não terão prejuízos em sua aprendizagem. Não há dúvida de que há muito a fazer para tornar as escolas públicas ambientes mais seguros e de mais qualidade. Mas, especialmente no contexto brasileiro, não há argumento que sustente essas teses.

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2025, por exemplo, mostra que sete em cada dez casos de estupro de menores de 14 anos ocorreram na residência da vítima. O Atlas da Violência desse mesmo ano também registra que a maioria dos casos de violência sistemática contra crianças ocorre no ambiente doméstico. A escola, nesse sentido, é justamente um local de proteção, especialmente quando há treinamento e suporte aos professores para identificarem e denunciarem esses casos aos órgãos competentes. Casos de violência grave na escola também existem, mas são muito mais exceção do que regra e viram notícia justamente por estarem visíveis aos olhos de toda a comunidade escolar, ao contrário do que ocorre com a violência doméstica.

No quesito aprendizagem, um agravante no caso brasileiro é o fato de sermos ainda uma população com escolarização precária. Nas escolas públicas, mais de 90% dos professores (92% no ensino fundamental e 97% no médio) possuem nível superior completo. No total da população adulta brasileira, esse percentual cai para 17%. O nível socioeconômico das famílias é o fator de maior impacto no desempenho dos alunos. Já dentre as variáveis intraescolares, destaca-se justamente o professor. De novo, é certo que temos muito a avançar na melhoria da carreira docente, mas supor que famílias com escolarização precária proporcionarão um ensino melhor do que o de profissionais formados é, para dizer o mínimo, irrazoável.

Há muito a melhorar na qualidade do ensino público, mas é importante lembrar que o aumento da escolarização no Brasil está associado à melhoria na saúde, redução de homicídios, aumento da renda feminina e diminuição da gravidez precoce indesejada, apenas para citar algumas evidências que extrapolam o que é mensurado em sala de aula. O PNE pode não ser o plano perfeito, mas misturar sua discussão com a pauta do ensino domiciliar é um desserviço à educação pública.