Antônio Gois: crise de identidade do Enem
O Enem vive, mais uma vez, uma crise de identidade. Na verdade, desde sua criação, em 1998, ele já era ambÃguo, pois se propunha a ser um parâmetro para a aprendizagem no ensino médio, ao mesmo tempo em que a gestão do ministro Paulo Renato Souza incentivava universidades a o adotarem em processos seletivos. Em 2009, já na gestão do ministro Fernando Haddad, veio a principal guinada. Para convencer federais a aderirem em peso — substituindo vestibulares próprios —, a prova passou a ser mais conteudista, e menos preocupada em refletir o currÃculo do ensino médio.
Ao se tornar, na prática, um gigante vestibular nacional, sua logÃstica passou a ser ainda mais desafiadora. O número de inscritos explodiu, chegando ao pico de quase 9 milhões em 2014, perÃodo em que o Enem — sempre em crise de identidade — serviu também como certificação de conclusão do ensino médio, algo que deixou de acontecer em 2016, e voltou a ocorrer neste ano
Nessa transição para um vestibular nacional, passou-se também a adotar a metodologia da Teoria de Resposta ao Item (TRI), técnica estatÃstica que exige um pré-teste de todas as questões para garantir, entre outros objetivos, o mesmo nÃvel de dificuldade de um exame para o outro. Uma das justificativas para adotar esse modelo era a promessa — jamais cumprida — de oferecer a todos os estudantes mais de uma data ao longo do ano para realizarem a prova.
Como bem explicou o ex-presidente do Inep Francisco Soares em texto publicado na rede social Linkedin, o modelo atual da prova exige uma logÃstica complexa, cara e, ainda assim, vulnerável, pois toda questão que cai no Enem precisa ter sido aplicada previamente, sob sigilo, num grupo de alunos similar ao conjunto de estudantes que realizam a prova. Daà porque, volta e meia, vazam questões, como ocorreu neste ano.
Outra zona cinzenta do Enem é em relação a seu uso enquanto diagnóstico da aprendizagem geral. Aqui parte da culpa é da imprensa, quando compara resultados de um ano para outro, ignorando que, sendo a participação facultativa, o perfil dos alunos tende a variar, inviabilizando inferências sobre melhoria ou queda na qualidade do sistema. Mas governos de todos os matizes, quando os resultados são favoráveis, já cometeram o pecado de comemorar aumento de médias.
O ministro Camilo Santana lançou neste ano duas propostas que exigem a manutenção da TRI. Uma delas é que a nota do Enem valha por três anos, e outra é que o exame seja usado para avaliar a qualidade geral do ensino médio, algo que demandaria, pelas razões explicadas no parágrafo anterior, que ele seja obrigatório a todos os concluintes ou que ao menos uma amostra dos estudantes seja sempre garantida para representar o total. É uma proposta controversa entre especialistas, com seus prós e contras.
Mas há outros dilemas a serem enfrentados. A aplicação simultânea de provas impressas a milhões de estudantes, em milhares de locais num paÃs continental, soa cada vez mais anacrônica. O SAT, exame americano que inspirou a criação do Enem (e que também utiliza a TRI), por exemplo, hoje é 100% digital, e oferece aos estudantes nos Estados Unidos oito opções de datas por ano. Ao contrário do que ocorre aqui, ele costuma ser apenas um dos critérios utilizados pelas universidades na seleção. E suas provas são adaptativas. A partir do nÃvel de acerto nas perguntas iniciais, o sistema adéqua as questões seguintes a cada estudante, aumentando sua capacidade de diferenciar candidatos por seu desempenho e diminuindo o risco de fraude, pois as provas vão sempre variar de aluno para aluno.
